"A brincar às coisas sérias fiz uma comédia com alçapões"

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Adriana surpreende pela novidade dos registos de fábula e de farsa, depois de filmes realistas e dramáticos...

Só tenho realmente dois trabalhos, em vídeo, que são pouco naturalistas, estão perto da fábula uma encomenda da RTP, Daisy - Um Filme para Fernando Pessoa, texto de José Sasportes; e uma outra da Lisboa'94, A Luz Incerta, a partir d'A Hora do Diabo de Pessoa. Não é que desemboquem aqui, mas está lá o desenho, meio fantasista, imaginoso, quase de conto infantil. Sempre me puxou um pouco para aí, ainda que o tom dos meus outros filmes seja sombrio, às vezes tenebroso, melodramático. Isso não deixou de me interessar, mas fui capaz de brincar com muita liberdade às coisas sérias, tal como as crianças.

Assim era puxado o fio de A(d)riana?

Sim, é a iniciação duma rapariga vinda dum mundo mítico, também o mundo autoritário do pai, para um mundo prosaico que é o do continente, o Portugal de hoje. Ela lança o olhar da inocência sobre o universo profano da cidade [Lisboa], atravessa um mundo de contradição entre a verdade e a falsidade, o original e a cópia...

O movimento dialéctico dela evolui noutras oposições ilhas/continente, fertilidade/esterilidade, moral/amoral.

Sim, sagrado/profano, a carne/o Espírito Santo, etc., coisas com que já me tinha metido, mas de forma muito irónica e quase simbólica.

A iniciação de Adriana replica a de Margarida Gil em Veredas (1977), de João César Monteiro/Maria Velho da Costa, trajectória sinuosa de Norte para Sul, em contexto de lendas e tradições, também com um ritual de fertilidade, além do banho, sendo-lhe até, de caminho, cortada a longa cabeleira?

Não foi consciente. Aqui o ritual está já contaminado pelo turismo que se desenvolve como um carcinoma na sociedade moderna aliás, a equipa de televisão está lá para registar com um olhar turístico, o olhar que mata aquilo. Há uma homenagem explícita, o banho na cascata é mesmo citação. O meu corte de cabelo na passagem de Norte para Sul, em Veredas, foi também iniciático, nem me lembrava... A forma como trabalhava nos filmes do João [César Monteiro] era tão simbiótica que me saía tudo do pêlo.

E apesar de, nos filmes próprios, a Maria Velho da Costa participar, só neste há emergência verbal do tom farsesco, notória e desconcertante. Porquê?

Este filme nasceu no final da rodagem do Anjo da Guarda, num tempo atribulado de grandes lutos os meus pais, o meu irmão, o João César, amigos... Anos terríveis, de tragédia em tragédia e, de repente, passaram a sair-me só coisas cómicas, ria-me o tempo todo, comecei a achar que estava doente da cabeça, mas disseram-me que alguns criadores trabalham em comédia nos momentos mais terríveis. Este guião, com várias demãos, foi aquele em que mais trabalhei, estava pronto quando a Maria Velho da Costa entrou no processo, com todo o seu peso nos diálogos, sim, mas as situações já lá estavam todas, o registo cómico também, o "constituir família por métodos naturais", frase-ponto-de-partida a dar o rumo e o tom à trajectória da protagonista.

Seria como um exorcismo, uma atitude de defesa, de sobrevivente?

Instinto de sobrevivência, talvez, não sei explicar. Mas fez-me espécie, achava extravagante a facilidade com que me saíam aquelas coisas cómicas...

Quem inventou a pássara falante?

Fui eu que pensei na Lola, personagem falante que veio do casting. A única que não fala é a Joana de Deus, a Cláudia Teixeira que foi Joaninha n'A Comédia de Deus, mais uma piscadela de olho, claro.

Porquê essa excepção na fala?

Ela devolve a linguagem pelo gesto dos surdos-mudos e a música de Schubert porque não pode falar, se calhar está morta, é doutro mundo. Por que ancora o filme nos Açores?

Porque é tudo quanto há de mais parecido com a serra da Estrela, o meu Monument Valley. Andava com a mania dos Açores há anos, escrevi o guião sem alguma vez lá ter ido, sabia que ia encontrar certas coisas e encontrei. Antes, quando o dei a ler ao meu amigo José Medeiros, ele disse-me que havia na Graciosa umas coisas assim... Também no Pico encontrei coisas que tinha descrito... É espantoso como a paisagem natural de origem nos marca tanto fui guiada pela intuição, que é extraordinária, embora não possa competir com a realidade, muito mais interessante.

E o sotaque? Ana Moreira é açoriana?

Não, faz de conta. Trabalhámos com apoio duma técnica de voz e dum actor, fez-se uma transcrição e ela trabalhou. É uma pessoa extraordinária, tem grande capacidade de trabalho. A estranheza que causa, a falar, era fundamental as pessoas pensarem que não percebiam percebendo é muito a atitude do falante em relação aos desvios da norma-padrão. Sobretudo vindo ela de Rabo de Peixe, uma aldeia de pescadores, um gueto a todos os níveis e portanto linguístico, que leva ao extremo o falar de São Miguel, não sei se não é também uma forma de se fechar ainda mais ao exterior, como defesa. Era importante essa fala num filme de desvios.

Desvios de quê ou em relação a quê?

À norma imposta pelo pai e por um problema do pai. Ele é a Ordem. Ele ordena, Adriana obedece. Manda-a ao encontro de alguém que lhe faça um filho e ela está disponível para fazer o filho com quem apareça, só que não há quem lho faça.

Os métodos naturais, proibidos na ilha, estão mesmo em baixa no continente?

Será falta de jeito dela ou deles. Na comédia, ela tem de continuar em frente, mas só lhe saem duques.

Além do aristocrata, que não me lembro se é duque mas parece impotente, tinha-lhe saído o travesti e o tipo do sexo tântrico. Grande crise. Que saída?

A Adriana poderá esperar a vez dela, a ilha encontrou uma solução.

E por métodos naturais, ao que parece.

Não sabemos. Terá sido o Espírito Santo? Não terá? Certo é que uma mulher da ilha engravidou, resolveu o assunto, quebrou a maldição. E aquela ilha é muito erotizada, é prometedor o regresso de Manuel, vindo da América. Há uma certa crença minha no mundo pagão, do deus Pã. Na natureza. Como diz a personagem de Isabel Ruth, "dá um jeito que a natureza faz o resto", uma frase que ouvi a Sophia de Mello Breyner. É a crença na imanência das coisas a ilha contém a possibilidade de se resolver, de se continuar. Acho que isto vem comigo, nos filmes, desde Relação Fiel e Verdadeira, porque está no meu percurso. Há, de resto, um diálogo inconsciente entre os dois filmes. Embora aquele seja muito sofrido, tenebroso, romântico, pesado, tem uma possibilidade de luz, a grande tenacidade e resistência duma miúda de 17 anos, a Catarina Alves Costa, nem sequer actriz. Se não o tivesse feito, não poderia fazer Adriana, sou um e outro, estou entre os dois, num jogo arriscado. Afinal, trabalho sempre do lado inconsciente, sonâmbulo, na corda bamba sobre uma água profunda e tumultuosa, como a menina a passar a ponte no Anjo da Guarda. Arrisco mas levo tempo a perceber o quê e falta muito para perceber agora o que é deixar uma pele para trás. E nem tudo é leve aqui, esta é uma comédia com alçapões.

A Adriana, se lá cai, não se magoa...

Sem deixar por isso de passar por situações violentas, mas é assim a comédia e gostei muito de trazer a actriz da tragédia para o sorriso, na imagem oposta à d'Os Mutantes.

Também o Bruno Bravo, um actor e encenador sério, em travesti de Amália Rodrigues, não é?

Pois, gosto disso, de ver as imagens feitas com um olhar distante... de quem vem de longe, lá da Serra da Estrela. Preciso de recuar, de dar uma volta ao bilhar grande e tornar a olhar doutra maneira.

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