Angela Merkel. O fim de uma era com uma promessa de continuidade

Após quatro mandatos, a era da governação de Angela Merkel aproxima-se do fim. A prosperidade económica da Alemanha é uma das marcas do seu legado
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22 de novembro de 2005 foi o primeiro dia de uma era. E, após 16 anos de ventos e tempestades, Angela Merkel prepara-se para deixar de comandar os destinos da Alemanha, uma potência económica mundial e o motor da economia da zona euro. Menos desemprego, menos dívida pública, crescimento económico e diversificação de mercados de exportação são, apenas, algumas das marcas que a chanceler deixa tanto na Alemanha como no resto do euro.

Nas próximas semanas o seu sucessor será conhecido, com o atual ministro das Finanças, Olaf Scholz, líder do SPD, a surgir bem colocado nas sondagens para lhe suceder num governo de coligação, como tipicamente sucede na Alemanha. Mas, seja quem for o sucessor, a continuidade de políticas deverá ser uma realidade. Mas Merkel deixa para dois encargos para quem lhe suceder: a transição digital e a transição energética.

"A chanceler Merkel teve um consulado longo, que tem três períodos diferentes. O primeiro, que é desde a eleição até 2010, em que foi essencialmente discreta", começa por explicar António Goucha Soares, professor do ISEG. Mas a crise do subprime nos EUA e, posteriormente, a crise das dívidas soberanas que assolou a zona euro a partir de 2010 - e que levou vários países a serem resgatados - representaram uma nova fase. "De 2010 ao verão de 2015, abre-se um novo ciclo e essa é a fase, digamos, mais negra da senhora Merkel".

Berlim, tal como outros Estados-membros da área do euro, aceitaram resgatar os países, sobretudo do sul, que estavam em dificuldades, mas em troca exigiam pacotes de ajustamento económico duros, agudizando a tensão entre os países mais do norte e os do sul. Acalmada a crise da dívida soberana, e com a Grécia ainda dentro do bloco do euro, a Europa ficou a braços com uma nova crise, desta vez a dos migrantes. A questão, ao contrário da crise anterior, não tinha um grande peso económico, mas Merkel, indo contra muitos elementos do seu partido, a CDU, assumiu uma posição de abertura, permitindo a entrada de milhares de refugiados. "A sociedade alemã reagiu bem [à posição da chanceler] e as eleições em 2017 resultaram numa confirmação do bloco central e, portanto, da continuidade", acrescenta o professor do ISEG.

O legado
A imagem de 16 anos de Angela Merkel ao comando dos destinos da Alemanha ficaria incompleta sem um olhar sobre o seu papel na economia. Não só do país mas também de toda o euro. "O legado da chanceler Merkel acaba por ser um período em que a Alemanha cresceu consistentemente acima da média do euro. Até mais importante: acabou por ganhar quota de mercado e preponderância face à França, que acaba por ser sempre o grande ponto de comparação, quer pela dimensão quer pela importância que as duas economias têm. Isso está relacionado não só com o que os vários governos de Merkel foram fazendo, mas também acaba por ser um processo que começou atrás, com as reformas do SPD [do mercado de trabalho] e que os governos de Angela Merkel foram mantendo", defende Ricardo Santos, economista especializado em assuntos europeus.

"Nestes 16 anos, a Alemanha acaba por afirmar-se como uma líder industrial e de exportações principalmente para a Ásia. A Ásia tornou-se bastante mais importante do que era anteriormente", acrescenta, notando que o peso dos países do euro continua a ser relevante.

Com as exportações a puxarem pela economia, Joana Silva, professora da Universidade Católica, destaca desta década e meia não só o bom desempenho económico mas também o rigor nas contas que permitiu a descida da dívida. "Teve um período relativamente estável de crescimento económico, o desemprego diminuiu dos cerca de 10% para cerca de 5% antes da covid, a dívida pública diminuiu de uns cerca de 80% depois da crise financeira para cerca de 60% do PIB. São feitos importantes (...) e ela tem muito mérito pela gestão que fez destas questões a nível do país e a nível europeu".

Angela Merkel não se cingiu, contudo, a um papel apenas na cena doméstica. Fora de fronteiras, o raio de influência foi alargado e as suas medidas tornaram-se lições sobre como lidar com futuras crises. "Ao nível europeu, teve um papel essencial na crise financeira internacional em 2009. Nessa altura, segurando os bancos e prometendo aos cidadãos fundos para segurar os seus empréstimos, foi muito importante. E também foi aí que a Alemanha, como pioneira, fez estas políticas que agora foram usadas na covid, de subsidiar os empregadores para que retivessem os trabalhadores. Isso foi feito na Alemanha durante a crise financeira e depois passado à escala de muitos países", diz ainda.

Ricardo Santos acrescenta que, na Europa, Merkel deixa um legado de maior integração. "Além do impacto direto que tem uma Alemanha a crescer, que leva por arrasto os outros países", mesmo sendo um crescimento assente sobretudo em exportações, "o grande legado acaba por ser uma maior construção europeia, uma maior integração da área do euro. Por vezes, pensa-se pouco no que foi a dificuldade dos resgates, mas se compararmos a integração atual da zona euro com a de 2005, está incomparavelmente melhor".

A herança
Tipicamente, os governos germânicos são resultado de coligações, o que exige pelo menos algumas semanas de negociações. O novo chanceler alemão deverá ser assim conhecido dentro de semanas, mas dois desafios que terá pela frente são já conhecidos: a transição digital e as alterações climáticas. "Será seguramente um governo de continuidade. Faz parte da tradição política alemã. O SPD está muito puxado para o centro. Angela Merkel também levou muito o partido dela para o centro. O SPD vai à frente nas sondagens e o atual líder é o ministro das Finanças. E será, se tudo se vier a verificar-se no sentido para que apontam as sondagens, o líder do partido com mais votos e, portanto, o possível encarregado de formar governo e uma possível coligação", adianta o professor do ISEG.

Ricardo Santos sublinha que o facto de a economia alemã se ter especializado ao longo destes anos em indústrias de elevado valor acrescentado e de elevada tecnologia, acabou por significar que as empresas não avançaram "tão rapidamente na digitalização e em serviços mais digitais. Isso acaba por ser visível com o que tinha vindo a acontecer à economia alemã já um pouco antes da covid, mas principalmente durante a fase do confinamento: as principais dificuldades das empresas eram com infraestruturas de acesso à internet. E isso acaba por ser um desafio para o próximo governo, qualquer que seja: a par da transição energética, reduzir esta diferença em termos da digitalização, que acabou por ser uma espécie de parente pobre do investimento público dos últimos anos".

Joana Silva acrescenta que a questão que "ficou um bocadinho atrás" nos governos de Merkel "foi a gestão das crises climáticas - ela própria admite que foi um aspeto em que tentou mas que não se conseguiu ir tão à frente como se pretendia. Quanto à energia nuclear, deu alguns passos importantes comprometendo-se a fechar todas as centrais nucleares".

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