Alegoria do patriarcado no regresso ao Trono de Ferro

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Nunca foi possível adocicar o sabor amargo da final de "A Guerra dos Tronos", tal como despejar pacotes de açúcar num café expresso de aeroporto é inútil. A devoção a esta saga fascinante, que captou audiências em todo o mundo durante oito anos, tem agora uma nova oportunidade de apanhar ar.

"House of the Dragon" da HBO pode ser a redenção do final desastroso que manchou o legado de uma história tão suja e cruel quanto alegórica e instrumental. O tema vale, certamente, a pena.

Esse tema é mais que o resumo atractivo feito por um dos criadores, de que se trata de "Succession, mas com dragões." A história é uma análise profunda do patriarcado. De como a misoginia está enraizada nas estruturas da sociedade e do poder. Situar uma história na Idade Média não é o motivo de um desequilíbrio tão acentuado de forças entre homens e mulheres: é um lembrete de que, apesar de todo o progresso que fizemos, o século XXI transportou para o futuro esse legado patriarcal.

A Rainha Que Nunca Foi, Rhaenys Targaryen, di-lo-á em breve à princesa nomeada sucessora da coroa: "Os homens prefeririam destruir o reino que ver uma mulher ascender ao Trono de Ferro."

Quando conversei com a actriz que interpreta Rhaneys (Eve Best) e o actor que encarna o seu marido Corlys Velaryon (Steve Tussaint) este tema foi dolorosamente moderno. Se retirarmos dragões e tronos de ferro à equação, aquela afirmação de Rhaenys tem eco na modernidade. Assistimos a isso na primeira fila em 2016 e continuamos a vê-lo agora.

"House of the Dragon" tem a oportunidade de explorar este tema num universo com elementos fantásticos e envolvê-lo em sub-temas interessantes, como o motivo pelo qual a família Targaryen dominou os Sete Reinos por séculos. Não foi pelo superior interesse dos súbditos nem por fidelidade cega das outras Casas. Foi porque detinham as armas mais poderosas daquele tempo - dezenas de dragões.

Há ainda narrativas convincentes sobre as dinâmicas de uma família que se ama e se odeia em simultâneo, do valor dos laços de sangue e em quem recai a responsabilidade de continuar as tradições. Também sobre os diferentes estatutos sociais conferidos pelo nome de família e cor da pele, olhos e cabelos. E uma investigação apropriada sobre como se escolhe quem nos lidera e como o poder é transferido de um governante para outro.

Tudo isto envolto no protagonismo de uma mulher que não se revê na forma como é vista e tratada pelo mundo. E na diferença de reacção a comportamentos conforme venham de um homem ou de uma mulher. Uma alegoria do patriarcado e dos seus efeitos desastrosos, da qual podemos extrair questionamentos válidos sobre o que vivemos hoje. Claro, com o bónus de 17 dragões que são um prodígio da tecnologia em Hollywood.

"House of the Dragon" afigura-se como uma das estreias mais importantes do ano e que pode, além de restaurar a fé entre os admiradores de George R. R. Martin, sinalizar um recomeço importante para a Warner Bros. Discovery, casa-mãe da HBO. A empresa resultante da fusão entre a WarnerMedia e a Discovery Inc. tem tido um começo conturbado numa altura estranha para os conglomerados de média e uma espécie de pós-era dourada do streaming. A série é uma mega produção numa altura em que os canais cancelam produções a torto e a direito e repensam as suas estratégias. Pouca pressão para os criadores Miguel Sapochnik e Ryan Condal, portanto.

Sabemos que o mercado e audiência hoje são vastamente diferentes daqueles que "A Guerra dos Tronos" encontrou aquando da sua estreia, em 2011. Esperemos que uma década de experiência e sabedoria se revelem frutíferas nesta nova vida da saga, que recua 172 anos antes do nascimento de Daenerys Targaryen. Não é o Inverno que está a chegar - são os dragões.

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