A tortura gloriosa de "Succession"
Atenção: este texto contém "spoilers"
Se há lição a retirar de uma história sobre poder, soberba e milhões de dólares é que raramente há heróis nas alturas decisivas. O último episódio de "Succession", que concluiu quatro temporadas absolutamente estrondosas de uma das melhores séries da década, mostra-nos isso. Não há heróis em "Succession." Não há acessos de consciência moral, lealdade ou reflexões sobre o bem comum.
O desfecho da história deixa-nos um certo amargo de boca, porque vai contra os nossos instintos de mérito, idoneidade e uma vaga ideia de justiça. Mas para fazer jus à história e aos personagens tão bem desenvolvidos por Jesse Armstrong, não poderia ser de outra maneira.
A série é particularmente importante neste momento. A inspiração não oficial do conglomerado ficcional Waystar Royco é o império de Rupert Murdoch, dono da News Corp e chair da Fox, cuja cadeia Fox News foi em grande parte responsável pelo delírio conspirativo dos eleitores republicanos nos últimos anos.
Na série, a Fox chama-se ATN e apresenta uma dose suplementar de conspirações, realidade criativa e poder para modelar eleições. O impacto negativo da desinformação veiculada pela televisão é um dano colateral minimizado pelo lucro e poder que confere.
Tal como o ficcional Logan Roy, Rupert Murdoch é um homem muito poderoso e velho (tem 92 anos) com uma mão cheia de filhos que ambicionam suceder-lhe.
Mas "Succession" é mais que lutas fratricidas e obsessão pelo poder. É uma série sobre a estrutura patriarcal da sociedade. Shiv Roy, que começara por ser a menos danificada dos potenciais sucessores, acabou por ser traída por todos os homens na sua vida: o pai Logan; os irmãos Ken e Roman; o marido Tom; e o parceiro de negócios sueco Lukas.
Tornou-se sempre um elemento secundário, descartável, solitário. As mulheres que passaram anos a serem preteridas nas empresas em favor de colegas menos qualificados só por serem homens reviram-se nalguma parte da jornada de Shiv. Quando chegou o momento de tomar a decisão final, qualquer dos lados era uma derrota.
Com o "não", Shiv dava o controlo da empresa ao seu irmão Kendall (Jeremy Strong), um homem com síndrome de grandiosidade, personalidade volátil e passado duvidoso. Com o "sim", Shiv dava o lugar que ela própria merecia ao marido que a traiu e a vitória ao sueco que a trapaceou. Não havia por onde ganhar.
Mesmo considerando que a opção de apoiar o marido era um mal menor, uma forma de continuar com um pé dentro da nova empresa, tudo isto foi uma derrota para Shiv. Enganou-se quem achou que o seu odor a superioridade moral era mais que perfume caro para esconder o mau cheiro. Não há heróis em "Succession."
A dinâmica familiar tóxica e a luta pelo poder num ambiente de riqueza estratosférica são conceitos difíceis de contemplar pela maioria das pessoas. O que é ter 100 milhões de dólares para rebentar numa campanha presidencial sem hipóteses? O que é ter um jacto privado à porta para nos levar ao Mónaco numa reunião de última hora? E ter o próximo ocupante da Casa Branca em "speed dial" no telemóvel? "Succession" transporta-nos para esse cenário sem ponta de deslumbre. A sátira está muito bem executada. É uma tortura gloriosa.
Foi ajustado que, no final, nenhum dos filhos de Logan Roy tivesse acabado a controlar o império do pai após a sua morte. O poder acabou nas mãos do marido de Shiv, Tom Wambsgans, depois de anos a espetar facas em costas alheias e a buscar a subserviência aos poderosos. O primo Greg, que obteve um diploma em lambe-botismo, também garantiu um lugar junto à mesa dos milhões. E o verdadeiro vencedor nesta guerra capitalista de sucessão familiar acabou por ser um forasteiro, um sueco de comportamento duvidoso que deglutiu o conglomerado americano sem arrotar.
É uma pena que Jesse Armstrong tenha decidido acabar a série neste auge, embora se perceba: num mundo em que tantos outros arrastam histórias até as temporadas estarem moribundas, o criador quis sair em alta.
Mas é uma pena sobretudo porque poucos conseguiram captar tão bem o delírio político e mediático dos nossos tempos. A bolha envenenada pelo dinheiro e poder excessivos em que vivem elites como os Roy, com consequências desastrosas.
Aqui o moral da história não é que o dinheiro só traga problemas; creio que só quem tem a mais acha que ele não traz felicidade. O moral é que nenhuma empresa deve ter tanto poder que alguém lá dentro possa decidir quem ganhou umas eleições ou que uma pandemia mortal não existe. Não porque acreditam nisso, mas para fazerem ainda, e tão somente, mais dinheiro.