Nestes 50 anos do 25 de Abril, por causa das celebrações, Portugal foi muito mais notícia em Espanha do que é habitual. Há grande curiosidade dos espanhóis pela Revolução Portuguesa?Muita, muita. Foi um momento de grande interesse por Portugal, pela História, mas houve este ano também um outro momento de grande interesse, pouco antes, com a queda do Governo de António Costa. Mas neste caso, dos 50 anos do 25 de Abril, foi um interesse por um acontecimento histórico, e normalmente os espanhóis não costumam ter tanto interesse pela História de Portugal. Infelizmente. Houve muitos programas na televisão, na rádio, muitos podcasts, inúmeras páginas nos jornais, até apareceram vários livros de autores espanhóis sobre a Revolução, não foi só o meu. Tudo isto mostra um grande interesse por parte dos espanhóis por este episódio da História portuguesa contemporânea, que muitos viveram com admiração e inveja, quando eram jovens..A Revolução Portuguesa de 1974 teve influência na forma como a Espanha fez a transição para a democracia a seguir à morte do general Franco, em finais de 1975?Teve, teve. A começar pelo facto de motivar os militares democráticos espanhóis. Que eram poucos, admita-se. Ao contrário das Forças Armadas Portuguesas, onde houve uma geração de soldados que avançou para a Revolução claramente ansiando por uma democracia para o país, em Espanha tal não aconteceu, pois as Forças Armadas Espanholas eram as que venceram a Guerra Civil, os franquistas, e que exterminaram fisicamente ou exilaram todos os oficiais que eram republicanos democráticos. Temos assim dois Exércitos radicalmente diferentes nos Anos 70. Mas houve, em Espanha, um pequeno grupo ativo de militares democráticos que ficaram impressionados com o que aconteceu em Portugal em abril de 1974, e isso encorajou-os a tentarem fazer o mesmo, pelo menos a tentarem pressionar por uma solução democrática para Espanha. Foi fundada a União Militar Democrática por oficiais que foram depois presos, muito influenciados pelos Militares de Abril e que tinham relações com eles, tiveram reuniões em Madrid, vieram vê-los em Lisboa. Fora da esfera militar, na esfera política, foi igualmente importante para Espanha. Para os defensores da ditadura foi um alarme que algo assim pudesse acontecer aqui. Assim, para os franquistas menos rígidos, digamos, foi um aviso de que era melhor tentarem levar a cabo um processo controlado de transição, do que permanecerem fechados na torre de marfim franquista, porque algo semelhante ao que aconteceu em Portugal poderia acontecer em Espanha. Naqueles anos havia uma grande mobilização na sociedade espanhola, houve grandes manifestações de estudantes, muitas greves. A seguir ao 25 de Abril, houve autênticas peregrinações de espanhóis que vieram aqui a Lisboa para ver o que era a liberdade, que vieram visitar Portugal, o país da liberdade. Muitos vieram também ver O Último Tango em Paris [risos], mas a maioria veio ver o que se passava em Portugal. Por causa deste meu livro, há muita gente que vem ter comigo e diz: “Eu estive lá em abril, estive lá no dia 1 de maio de 1974.” Muita gente em Espanha passou a fronteira, passou a raia, para ver o que se passava..Muitas dessas pessoas tinham curiosidade por figuras da Revolução, como Salgueiro Maia ou Otelo Saraiva de Carvalho ou o general António Spínola, estes dois últimos depois figuras trágicas. No seu livro, fala muito sobre os heróis de Abril. É Fernando Salgueiro Maia o herói principal que identifica no 25 de Abril?Acredito que sim, primeiro pelo que fez no próprio dia 25 de abril. Não só uma, mas várias vezes, teve atos heroicos. E depois teve a temperança, o controlo, a sabedoria, digamos, o talento para não deixar que tudo se transformasse num banho de sangue. O que poderia ter acontecido se não fosse essa sabedoria? E aí acredito, sim, que a sua personalidade teve muita influência. Os militares queriam um golpe pacífico, não há dúvidas, foi essa a base do Movimento dos Capitães, mas com um militar talvez mais zangado, mais impulsivo do que Salgueiro Maia, talvez aqui no Largo do Carmo o sucedido não tivesse acontecido, não teria estado tantas horas à espera que Marcello Caetano se rendesse, acabaria por disparar a sério e provocar uma resposta da outra parte. Dentro do quartel, havia militares com poder de fogo. Assim, creio que, no terreno, foi sem dúvida o militar mais importante daquele dia e aquele que deu sinais do heroísmo que, tanto ele, como outros muitos capitães tinham mostrado na Guerra Colonial. E acredito que esta aura que conquista no dia 25 de Abril, não a perde depois. Otelo também conquista essa aura a 25 de Abril, mas acaba por perdê-la mais tarde, porque acaba envolvido na órbita das Forças Populares 25 de Abril. É uma personagem trágica, como diz, no sentido de amado e odiado, como Álvaro Cunhal. Otelo é um herói do 25 de Abril, mas depois deixa de o ser. E Salgueiro Maia nunca deixou de ser um herói. Nunca fez nada pelo que tivesse de pedir desculpa ou pelo que fosse questionado pela sociedade portuguesa. Creio que os portugueses o consideram o herói mais puro. E morreu muito cedo. Talvez se morresse 20 anos depois e fizesse asneiras, como dizia Lídia Jorge, aí os portugueses já vissem Salgueiro Maia de outra forma. Mas morreu muito jovem. E isso romantiza ainda mais a figura..Abril é um PaísTereixa ConstenlaFaktoria K20,00 euros322 páginas.Como vê o período a que chamamos PREC? Ou seja, aquele ano e meio até ao 25 de Novembro de 1975 em que a Revolução fervilhava em todos os sentidos, em que houve tentações totalitárias, mas em que, ao mesmo tempo, se realizaram eleições em abril de 1975 que deram clara vitória ao PS liderado por Mário Soares e mostraram a vontade dos portugueses de ter uma democracia do tipo das da Europa Ocidental.Bem, o PREC é um período fascinante, porque, de repente, aconteceram muitas coisas ao mesmo tempo. É como se o país estivesse a ser centrifugado. A História estava a acontecer a todo o momento. Por causa de todas aquelas forças tensas que começaram a surgir. Emergem todas essas forças reprimidas durante quase meio século. Também forças que estiveram no poder durante meio século tentaram recuperar o poder que tinham acabado de perder no 25 de Abril. Entre os militares há pensamentos políticos muito diferentes. Há desde soldados conservadores a soldados de extrema-esquerda. E dá-se a luta entre a legitimidade política que o Partido Socialista conquistou nas Eleições Constituintes de abril de 1975 e a legitimidade revolucionária que o Partido Comunista reivindica para si nas ruas. Os comunistas ao verem que eles, que foram a principal força de Oposição à ditadura, não conseguem, nas urnas, alcançar a primazia, concentram-se na rua, onde acreditam poder alcançar a legitimidade revolucionária popular. Há ainda outras forças políticas de extrema-esquerda, com discursos impactantes, mas eram pequenas, sem verdadeiro poder. Portanto, há duas legitimidades na esfera política a lutar entre si. Depois, há as lutas dentro do Movimento das Forças Armadas, entre a esquerda militar revolucionária e os democratas moderados, que no final seriam o Grupo dos Nove, e as forças conservadoras dentro do movimento que recuperam força depois do 25 de Novembro. Portanto, é um período fascinante por muitos motivos. Também se nota uma luta entre um norte que é muito mais conservador, que está preocupado com a deriva revolucionária que Lisboa está a tomar, e o Alentejo e o sul em geral, onde há muito mais gente de esquerda..Surpreende-a que o PREC, depois de tanta tensão, tenha terminado de forma quase pacífica?Bem, houve violência, porque havia até grupos de extrema-direita que cometeram ataques contra sedes dos partidos de esquerda e há mortes. E muitos historiadores, muitos protagonistas dessa época igualmente, estão convencidos de que o país esteve à beira da Guerra Civil em novembro de 1975. Mas é curioso que, num país que está a beira da Guerra Civil, tudo acabe com relativa facilidade, certo? Quer dizer, para um país que está prestes a explodir, tudo acaba muito bem. É uma questão complexa, ainda, o 25 de Novembro..No seu livro também fala sobre a descolonização portuguesa. É uma das consequências da Revolução. É algo também que, visto de Espanha, é surpreendente, não é? Uma descolonização tão tardia.Sim, porque a Espanha nesse processo é diferente. As independências, a maior parte das independências americanas, ocorreram no século XIX, ao mesmo tempo da independência do Brasil. Depois, em 1898, quando Cuba e as Filipinas se perderam, foi o desastre final e o choque, pois sobrou muito pouco do império. Tivemos até uma geração de intelectuais que se dedicou a olhar para as feridas de 1898, onde estamos e para onde vamos, agora que não somos o que éramos..E Portugal passou por isso bem mais tarde, em 1974, 1975.E Portugal teve isso só em 74, 75. E, portanto, nesse sentido, é uma exceção àquilo que Espanha e Portugal tiveram no século XX, que foi processos históricos muito paralelos. Tiveram ditaduras semelhantes em paralelo. Tiveram a chegada da democracia em paralelo. E entraram juntos na União Europeia. Mas a questão da Guerra Colonial é um elemento totalmente diferente, tal como a Guerra Civil em Espanha foi um elemento distinto. Penso que a Guerra Colonial é um mundo ainda por descobrir para os historiadores e os criadores portugueses. Há já muito trabalho de investigação, também há literatura maravilhosa passada neste período, mas acho que ainda não se estudou e se escreveu o suficiente sobre o assunto. Não houve ainda uma geração que decidisse cavar neste passado com todas as consequências..Escreveu sobre a morte há dias de Celeste Caeiro no El País. A portuguesa teve também direito a obituário no Le Monde e na The Economist. Foi uma última homenagem à mulher que ofereceu cravos vermelhos aos soldados no 25 de Abril ou uma vénia ao romantismo da Revolução Portuguesa?Ambas as coisas. Mas Celeste faz parte da Revolução. Celeste e tudo o que envolve a Revolução dos Cravos está rodeado de romantismo. E se a Revolução está rodeada de romantismo é porque houve uma série de gestos e acontecimentos que ajudaram a construir, de alguma forma, essa imagem. Aquela admiração geral e sem sombras de todo o mundo pelos portugueses e pelo feito português..Celeste Caeiro personifica isso?Eu penso que sim. Tal como Zeca Afonso por causa de Grândola. Ele acaba por ser um símbolo do 25 de Abril. Mais, por exemplo, do que o capitão Costa Neves, que assumiu a ocupação do Rádio Clube Português. Para o povo, para o imaginário popular, Zeca é um símbolo do 25 de Abril. Ele não fez nada nesse dia, mas fez aquela canção. Bem, ele lutou contra a ditadura de Salazar e Caetano, mas não fez nada especificamente para aquele dia, para o 25 de Abril, mas a sua canção tornou-se o hino da Revolução e mais tarde o hino da liberdade. É também o caso da Celeste Caeiro. No outro dia o jornalista Adelino Gomes estava a falar dela na apresentação de um livro e disse que é o símbolo do povo português, que nesse dia tem um papel tão importante, porque imediatamente vai para a rua, abraça o golpe militar, e faz com que este se torne uma Revolução. E Celeste é, de alguma forma, o símbolo daquele Portugal, daquela Lisboa. É o rosto daquela gente humilde e sofredora que vive na pobreza, ela é empregada de mesa, e apercebe-se de que algo de importante se passa na rua quando encontra os soldados que pedem um cigarro e lhes dá os cravos que tem na mão. E os soldados põem os cravos no cano da espingarda. Um gesto espontâneo, que é um gesto que diz, estou a abraçar o que estás a fazer. É um gesto que simboliza o povo a abraçar o que está a acontecer, o que os militares estão a fazer, a dizer que estamos convosco, estamos a avançar juntos de alguma forma. E é por isso que eu acho triste a Celeste não ter tido o reconhecimento merecido em vida, uma homenagem, porque ela não saiu à rua para fazer História, saiu à rua para trabalhar e espontaneamente deu um cravo que se tornou um símbolo da fusão do povo com os militares, mas ao mesmo tempo passou a dar o nome à Revolução, um nome maravilhoso, um nome que nenhum gabinete de marketing poderia pensar em melhorar. Por isso acho que foi trágico que a Celeste tenha morrido nas condições de pobreza em que morreu.