Por uma Ciência realmente ao serviço da Sociedade

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Tempos houve em que a ciência era das dimensões mais pacíficas da sociedade. Há 50 anos atrás podíamos discordar quanto a política, religião ou futebol, mas o conhecimento científico não gerava antagonismo. Esses tempos deram à luz uma perceção da ciência bem diferente e que permeia a nossa atual vivência. O que mudou? A aura de generosidade e até de sacrifício em prol do bem comum que a ciência tinha, transformou-a num alvo irresistível para quem descobriu que a podia manipular a favor dos seus interesses escondidos. 
 
Influências de todos os tipos têm sabido financiar a ciência que lhes garante os resultados pretendidos. Há trabalhos a concluir que o tabaco não causa cancro do pulmão e que os combustíveis fósseis não contribuem para as alterações climáticas, por exemplo. Esta apropriação veio desvirtuar o que a ciência tinha de melhor e contribuiu para o deslustre visível nos nossos dias. O conhecimento também ser por vezes canalizado para fins destrutivos, como armas, leva muitos a desacreditar e até indignar-se. Pessoas como a minha mãe, de quase 90 anos, por vezes comenta “Tanta ciência para quê?" quando assiste ao noticiário. Não está sozinha nessa leitura. 
 
Mas isso não impede que continuemos a precisar de ciência e do seu fabuloso impacto positivo. Sujeita a limitações como qualquer empreendimento humano, ainda assim representa a nossa melhor oportunidade de entender o mundo de forma objetiva. Sem ela restam apenas opiniões pessoais discutíveis e, frequentemente, erradas. Como é que se pode garantir que a ciência fica ao serviço exclusivo da sociedade? 
 
O tema é complexo e merece atenção pelo que me limito a duas ideias à laia de pontapé de saída. A primeira refere-se à necessidade de compreensão dos limites da ciência. Por exemplo: a ciência pode esclarecer quais as vantagens e desvantagens de diferentes localizações para um novo aeroporto, mas a decisão final tem de levar em consideração outros aspetos que a ciência não trabalha. Isso inclui questões do tipo: as vantagens económicas justificam o prejuízo climático? Os interesses das gerações futuras foram tidos suficientemente em consideração? As populações locais foram devidamente compensadas? Qualquer decisão política que se baseie exclusivamente na ciência para se justificar, por muito que a ciência seja honesta, deve ser vista com alguma suspeita. 
 
A segunda ideia é a formação dos próprios cientistas. Embora a investigação traga consigo a especialização, não obriga ao alheamento. Se um investigador conseguir entender as ramificações do que faz, e as ponderar no que toca ao mundo para lá do laboratório, mais facilmente vai acautelar desenvolvimentos infelizes. Efetivamente pede-se aos cientistas que aprendam e incorporem filosofia, sociologia, direito e até geopolítica na sua formação. A ignorância tem mais desculpa que a erudição insensível. 
 
O busílis, como em todos os desafios coletivos, está na consensualização de soluções. O pontapé de saída pode ser dado pelas universidades, enquanto instituições de criação de conhecimento. Os cientistas que de lá saem devem assumir o seu papel de cidadãos do mundo, responsáveis sobretudo perante aqueles que não têm voz. O seu treino deverá ser eclético e a sua formação integral. Os valores, e não apenas a informação, devem ser discutidos, aprendidos e, sim, avaliados. Como é que isso se faz? As universidades facilmente descobrirão. 

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