Retratos de um passado de “peste branca”. Os sanatórios da tuberculose em Portugal
Estamos em 2024: a tuberculose é uma doença atual. Ainda existe estigma, preconceito, iliteracia e vulnerabilidades sociais. Alimenta-se na pobreza, da insalubridade, do desconhecimento, de problemas da habitação, da exclusão. Os números de Portugal não são dos melhores da Europa. Precisa de atenção e monitorização de todos. Nem tudo é história.” As palavras lapidares de José Avelãs Nunes, arquiteto de formação, docente, investigador e autor, somam-se àquelas que tece ao longo da conversa a propósito do livro que assina, Arquitectura Branca - Os Sanatórios para a Tuberculose em Portugal (edição Sociedade Portuguesa de Pneumologia/By the Book).
O mote para o livro, prefaciado por António Morais, presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, embrenha-nos numa história pretérita, mas com ecos no presente: “O que nos contam os sanatórios através das suas paredes? O que ouviram, durante décadas, aos seus médicos, arquitetos e doentes? Como se vivia, durante meses a fio, na esperança de uma cura? Que mãos desenharam a arquitetura para a ‘peste branca’?”, são perguntas que bailam na contracapa da obra.
Questões às quais o doutor em Arquitetura pela Universidade de Coimbra, com pós-doutoramento em História da Ciência, responde ao sabor das mais de 250 páginas do livro que decorre de uma tese de doutoramento galardoada em 2018 com o Prémio Victor de Sá de História Contemporânea. Um livro que nos oferece como protagonista o sanatório para a tuberculose, enredando-o na história da medicina e arquitetura entre as décadas de 1850 e 1970 e em espaços como os Sanatórios de Portalegre, de Santana, de Carcavelos, Marítimo do Outão ou de Paredes de Coura.
A história da tuberculose “é composta por múltiplos retratos. São fotografias onde diversos médicos, arquitetos e outros experts têm como pano de fundo os sanatórios que contam a história da tuberculose e dos tuberculosos. São também momentos capturados, pelo obturador, de várias sociedades, de vários períodos históricos, políticos e sociais, onde a ‘peste branca’ condicionou vidas e marcou gerações”. Estas são palavras que subtraímos ao livro de José Avelãs Nunes, pretexto para perceber os porquês de embrenhar o seu trabalho neste campo vasto.
Para o autor, a génese da presente obra tem os seus caminhos cruzados com um “edifício na serra da Estrela pelo qual passei várias vezes e do qual não conhecia a sua história. Estava no primeiro ou no segundo ano do curso de Arquitetura. Era o Sanatório dos Ferroviários, que se encontrava completamente abandonado, com centenas de radiografias espalhadas pelo chão, vidros partidos, como que despido, em silêncio.
Tanto para este edifício, como para os seus congéneres, questionei-me sobre a definição de sanatório, a sua utilização, o propósito e o motivo do seu abandono. E razão de estar especificamente naquele local. Foram estruturas habitadas por milhares de tuberculosos e não tinham uma voz. ‘Levei-os’ a doutoramento, com bolsa da FCT, e este livro é parte desse resultado”.
É também à serra da Estrela que o autor vai resgatar outra das histórias singulares do tratamento da tuberculose no nosso país: “César Henriques é uma espécie de ‘doente zero’: um tuberculoso que se ‘curou’, segundo os médicos da época, através de uma estada prolongada na serra da Estrela. Este feito, verificado por médicos, com destaque para Sousa Martins, permitiu fiabilizar a serra da Estrela como eficaz, pela sua altitude e bons ares.
Não foi uma casa desenhada por um arquiteto, mas consolidou o território onde a arquitetura operou. Mostra também estruturas semelhantes às galerias de cura e uma preocupação com baixas variações térmicas, exposição solar e controlo de arejamento. É um exemplo onde arquitetura e doença se relacionam de forma que extravasam a visão do projeto e do desenho. Foi um modelo para a Guarda”.
Ainda em território nacional, e na perspetiva de um arquiteto, “o Sanatório Sousa Martins é dos primeiros, com intervenções de vários arquitetos, como Raul Lino ou Vasco Regaleira, desde 1907 até à década de 70 do século XX. Replica uma cidade, com uma rádio local, posto de telégrafo, prisão, cinema, capela, alamedas e ruas, onde pequenos e clássicos chalets de montanha convivem com grandes edifícios minimalistas. Foi implantado num jardim com grande escala urbana, onde ainda funciona o Hospital da Guarda”.
Retalhos do passado que resgata para o seu livro, obra que implicou a multiplicação de horas de estudo e de investigação. “Foi como coser uma manta de retalhos. Grande parte dos arquivos e dos espólios da Assistência Nacional aos Tuberculosos foi destruída. O arco cronológico em estudo comportou mais de 100 anos, o que implicou consultar muitos arquivos. Ao mesmo tempo, procurei uma visão interdisciplinar.” Na prática, as respostas às interrogações que o autor levava “não poderiam ser respondidas apenas através da arquitetura, mas através dos arquitetos, dos médicos, dos decisores políticos. A leitura da produção médica não foi fácil para um arquiteto, mas é fundamental para se compreender que os sanatórios são prescritos por médicos e projetados por arquitetos”.
A “peste branca”, prognóstico de morte
Tuberculose é uma palavra com um enorme peso social e individual, uma doença que, como nos recorda José Avelãs Nunes, “assolou grande parte da população portuguesa. Matou milhares de pessoas, com contágio rápido, sem escolher estratos sociais. Esteve ligada a aparentes opostos, desde alcoolismo ou prostituição, até às visões mais românticas e elitistas. Ceifou famílias inteiras. Para além de ser muito visível pelas expressões físicas do doente, pálido e ‘consumido’, a ‘peste branca’ era prognóstico de morte”. Em consequência, o doente ficava exposto e vítima de violentas segregações.
Uma doença “sem tratamento médico eficaz até à década de 50 do século XX: até lá, foi a arquitetura parte fundamental do tratamento e da profilaxia”. Sanatório provém, precisamente, da palavra “sanar”. Uma esperança de recuperação que se fazia com repouso e com o chamado “tratamento climatérico”.
Longe do ambiente impoluto dos sanatórios, as questões de má higiene e salubridade ‘alimentavam’ a tuberculose. José Avelãs Nunes estudou e retratou no seu livro a malha urbana de Lisboa e do Porto no início do século XX. A este propósito, cita António Gomes Ferreira Lemos: “O Porto como uma das cidades mais deletérias da Europa” (Contribuição para o Estudo da Higiene do Porto: Ilhas).
“As relações de proximidade são caras à tuberculose e, como tal, à sociedade da época. Sendo a tuberculose pulmonar contagiosa, sobretudo por via inalatória, a distância entre pessoas é fulcral para evitar o contágio. Assim, em grandes aglomerados urbanos, como o caso dos pátios em Lisboa ou as ‘ilhas’ no Porto, mostravam um elevado índice de tuberculose. As casas não eram ventiladas, com várias famílias num só quarto, o que, juntando ao analfabetismo e às miseráveis condições de trabalho, propicia o contágio e a consequente taxa de mortalidade.
A higiene não era apenas um conceito de limpeza, de asseio, mas também de condições de espaço. Não tinham esgotos ou água canalizada. Grande parte da malha urbana mais fechada foi intervencionada para melhor arejamento. A tuberculose e o higienismo contribuíram para estes ‘rasgamentos’ urbanos e arquitetónicos”, detalha o autor de Arquitectura Branca, livro que também arrecadou o Prémio Lusitânia da Academia Portuguesa da História (2022).
De uma ideia de insegurança à esperança de cura
É lícito afirmar que inicialmente o sanatório seria mais um ‘contentor’ para evitar o alastramento da tuberculose e menos um espaço de reabilitação?, perguntamos ao investigador. “Os sanatórios foram, primeiramente, considerados como focos de insegurança, de perigo, quando instalados nas periferias das cidades. À medida que a sua eficácia foi sendo comprovada, passaram a ser lugares seguros para os habitantes ao seu redor. Foram ‘contentores’, se considerarmos o seu regime fechado, com um programa estrito e detalhado, mas não foram prisões. Segregavam, sim, os sãos dos doentes: para os seus internos, era uma esperança de cura; para os demais, era uma (falsa) segurança, com os tuberculosos devidamente separados. Existia também uma disciplina vigiada e vigilante, ou seja, tudo era controlado e desenhado para ser controlado.”
O problema é que os sanatórios não tinham capacidade para responder a todos os doentes. “Há que afirmar que eram privados, mesmo sob o manto de várias instituições de beneficência. Tinham algumas vagas para doentes mais carenciados, mas eram para os ricos. No limite, eram espaços para reabilitação de quem poderia pagar e para a sua própria segurança. Os doentes poderiam estar anos confinados a um sanatório”, adianta José Avelãs Nunes.
Recorremos às palavras do autor no seu livro para perceber o efetivo contributo dos arquitetos para o debate em torno do tratamento da tuberculose: “São, por excelência, os arquitetos e as suas arquiteturas [...] que conduziram todo o processo da arquitetura antituberculose ao longo de mais de um século.” Porquê?, questionamos: “Os arquitetos criaram soluções e projetaram os espaços, por um lado, trabalhando na contenção da doença e, por outro, escrutinando modelos, testando-os, sempre com muita atenção à ciência, nomeadamente à Medicina. Os arquitetos debateram os sistemas sanatoriais a nível nacional e internacional, como também debateram com médicos e decisores políticos. Viajaram, muitas vezes com a companhia dos médicos, para visitas às referências internacionais de sanatórios, leram tratados médicos, estudaram a doença.”
No final do século XIX e início do século XX ocorre em Portugal uma série de alterações profundas no combate à tuberculose, a par dos primeiros sanatórios para o efeito. “A Assistência Nacional aos Tuberculosos é instituída em 1899, pela rainha D. Amélia. Surge numa sequência de várias instituições de beneficência e atravessa vários momentos políticos, tendo controlado quase todos os sanatórios em Portugal. Sofreu alterações programáticas, mas em continuidade com a monarquia que a fez nascer: tinha financiamento estatal, mas não era universalista. As suas várias reformas não resolveram o problema e, em particular, o Estado Novo não estava particularmente interessado neste tema.
Depois de 1976 é integrada no Serviço Nacional de Saúde, já como Serviço de Luta Anti-Tuberculosa. Nessa altura de pouco serviam os sanatórios, pois a tuberculose já era tratada em ambulatório, por fármacos, mas todos passaram a ter tratamento e diagnóstico universal e gratuito para a doença”, sublinha José Avelãs Nunes.
Espaços de tecnociência
“Apenas na primeira década do século XX os sanatórios passaram a ser considerados espaços de tecnociência, ou seja, existia um programa arquitetónico e um programa médico. A arquitetura não foi apenas uma resposta, foi parte da solução, e notam-se as evoluções. Tudo foi desenhado ao ínfimo pormenor, respondendo a exigências científicas. O tempo de exposição solar dos doentes, por exemplo, ou o controlo térmico dos quartos implicaram mudanças nas aberturas das janelas e das portas, como também a ventilação especial dos quartos. As galerias de cura, onde os doentes repousavam em estrito cumprimento de regras de tempo, de dobrar o cobertor ou de não falar, vão evoluindo o seu desenho à medida que o programa médico também se altera à luz de novos conhecimentos. A vida interna nos sanatórios passa a ser prescrita por médicos, com caráter científico, dentro de ‘arquiteturas’ também técnicas e científicas.”
Hoje, “grande parte dos edifícios foram abandonados, estão devolutos ou são já ruínas. Alguns, com mais sorte, foram convertidos em hospitais ou centros especializados em doenças mentais ou para recuperação física. São edifícios multivalentes e versáteis que podem ser resgatados para diversos usos pela sua polivalência. O primeiro sanatório que visitei, o dos Ferroviários, agora é uma Pousada de Portugal intervencionado pelo arquiteto Souto Moura”.