Em 2020, devido à pandemia, a TAP decidiu rescindir os contratos de trabalho com cerca de 1200 tripulantes.
Em 2020, devido à pandemia, a TAP decidiu rescindir os contratos de trabalho com cerca de 1200 tripulantes.

TAP arrisca pagar 300 milhões de euros a dois mil tripulantes

Supremo deu razão a tripulantes que exigem retroativos, com ajuda de parecer jurídico elaborado em 2021 por Maria do Rosário Ramalho, atual ministra do Trabalho. Centenas de outros tripulantes admitidos desde 2006 poderão fazer a mesma exigência.
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Em vésperas de mais um processo de privatização, a TAP tem pela frente uma contingência que deverá representar um encargo de entre 200 a 300 milhões de euros. O Supremo Tribunal de Justiça proferiu no passado dia 12 uma decisão final a respeito do braço-de-ferro que há vários anos se arrastava entre a companhia aérea e dezenas de tripulantes que a TAP dispensou em 2020/2021, não renovando os seus contratos de trabalho a termo. O Tribunal concluiu, numa decisão unificadora, a que o DN teve acesso, que os contratos a prazo na TAP estavam mal fundamentados e que os trabalhadores em causa deveriam estar integrados no quadro de pessoal como efetivos, desde o primeiro dia, pelo que lhes é devido o pagamento de retroativos. Mais: a decisão abre a porta a que cerca de dois mil tripulantes admitidos na TAP com contratos a prazo, desde 2006, possam fazer a mesma exigência.

Para a decisão do Supremo contribuiu um parecer jurídico elaborado em 2021 pela professora catedrática Maria do Rosário Ramalho, atual ministra do Trabalho e Segurança Social, a pedido do Sindicato Nacional do Pessoal de Voo da Aviação Civil (SNPVAC), revelou ao DN o presidente desta entidade, Ricardo Penarróias. 

“A professora Maria do Rosário Ramalho é uma especialista muito respeitada na área do Direito Laboral e decidimos pedir-lhe um parecer para fazer chegar ao Supremo, quando os primeiros processos de tripulantes subissem a esta instância, o que aconteceu em 2023”, explicou. “Não quisemos usar esse trunfo antes”, frisou Penarróias. 

O líder sindical considera que a decisão do Supremo Tribunal vai obrigar a TAP a indemnizar não só os tripulantes dispensados em 2020/2021, como também largas centenas de pessoas que foram admitidas na empresa, com contratos a termo, desde 2006. A soma dessas indemnizações, a que a TAP não poderá eximir-se, dada a decisão do Supremo, ascenderá a várias centenas de milhões de euros.

“Estamos a falar, seguramente, de entre 200 a 300 milhões de euros”, disse o dirigente, acrescentando que lamenta a “visão de curto prazo” das sucessivas administrações da TAP, que preferiram “ignorar o assunto e empurrar com a barriga”. 

“A história da TAP está cheia destes episódios em que a visão de curto prazo prevalece e os interesses da companhia e dos seus funcionários são prejudicados”, defendeu.

“O sindicato teve sempre uma postura positiva e pró-ativa sobre este tema. Chamamos a atenção dos vários ministros dos sucessivos governos, desde Pedro Nuno Santos, João Galamba e Miguel Pinto Luz, bem como dos CEO da TAP, mas diga-se, em abono da verdade, que o único que tentou realmente fazer alguma coisa foi o atual presidente da companhia, Luís Rodrigues”, afirmou ainda o sindicalista. O SNPVAC está agora “disponível” para reunir com a administração da TAP para tentar encontrar uma solução que seja positiva para todas as partes, disse Ricardo Penarróias, salientando, porém, que a decisão final sobre cada processo será sempre dos trabalhadores envolvidos. “Qualquer um dos trabalhadores abrangidos por esta decisão pode simplesmente exigir o que lhe é devido na íntegra, ainda que tenha de esperar pela decisão dos tribunais, que não deverá contrariar a do Supremo”, disse. 

Questionada pelo DN, fonte oficial da TAP recusou “comentar questões judiciais”. Não foi possível apurar, até ao fecho desta edição, se foi constituída alguma provisão nas contas da TAP relativas a esta contingência judicial.

Decisão do Supremo abre caixa de pandora

Na origem do problema está a forma como a TAP justificou o recurso a contratos de trabalho a termo para reforçar as suas tripulações de cabine. Entre 2006 e 2018, a prática corrente na companhia consistia em os novos tripulantes serem recrutados com contratos a termo por um período máximo de três anos. No entanto, era dado como adquirido que a empresa passava essas pessoas para os quadros - para a categoria “CAB1” - ainda antes do final do prazo de três anos, assim que existisse necessidade de reforçar algumas rotas para as quais é necessário pertencer à referida categoria. Por outro lado, facto significativo, ao passar para “CAB1” os tripulantes têm direito a receber um valor diário adicional, sempre que voam. E que, na prática, duplica o seu vencimento mensal.

Este estado de coisas mudou em 2018, quando a administração liderada por Antonoaldo Neves - nomeado pelo então acionista privado David Neeleman - decidiu obrigar os tripulantes a permanecerem com contratos a termo durante o prazo máximo de três anos, recusando-se a fazer a sua passagem para “CAB1” e a pagar o valor per diam respetivo. Na altura, o sindicato ameaçou com uma greve e, com mediação da Direção do Emprego e das Relações do Trabalho (DGERT), a administração da TAP acabou por ceder, mas nenhuma das partes abdicou das respetivas posições sobre o assunto. A questão regressou no ano seguinte, em 2019, com a administração da TAP a recusar fazer essa passagem para os quadros antes do final dos três anos.

O “pecado original” dos contratos a prazo na TAP

Na altura, a equipa jurídica do SNPVAC chegou à conclusão que existia um pecado original na argumentação da companhia aérea, que consistia na forma como os contratos a prazo estavam justificados. A lei estabelece que a contratação a termo só é possível se existir uma razão de natureza provisória que a justifique, como por exemplo um acréscimo de atividade em determinado período. E, além disso, o contrato tem de fazer essa ligação entre o motivo e o prazo, de forma muito específica.

“Descobrimos que todos os contratos de trabalho a termo que a TAP celebrou com os tripulantes desde 2006 tinham essa falha, o que significa que, à luz da lei portuguesa, essas pessoas deviam ter sido integradas nos quadros da empresa desde o primeiro dia de trabalho”, disse ao DN a advogada Irís Batista, do departamento jurídico do SNPVAC. “Tal como muitas outras empresas, a TAP serviu-se do instrumento dos contratos a termo como se fosse um período experimental e para contratar pessoas a custos mais baixos, quando a lei determina que essa possibilidade apenas é permitida em determinadas situações”, acrescentou.

“A TAP andou anos a anunciar um crescimento fantástico, com novas rotas e mais aviões, mas isso foi conseguido à custa dos tripulantes”, argumentou, por sua vez, Ricardo Penarróias, lembrando que “muitas empresas fazem o mesmo com os contratos a prazo” e que espera que a decisão do Supremo no caso da companhia aérea possa servir de “exemplo” para todos os empregadores. “Esta decisão é um marco na contratação coletiva em Portugal”, defendeu.

A situação complicou-se em 2020, quando a companhia, devido à pandemia, decidiu rescindir os contratos de trabalho com cerca de 1200 tripulantes. Muitos recorreram à Justiça, exigindo ser reintegrados e indemnizados, tendo surgido decisões contraditórias. Até que foi pedida uma decisão unificadora ao Supremo, que agora será aplicada a todos os processos pendentes. Por uma questão de necessidade, com a reabertura do tráfego aéreo após a pandemia, a TAP foi obrigada a reintegrar cerca de mil desses tripulantes com quem rescindira. Nos seus contratos, foi colocada uma cláusula onde se prevê que, se o Supremo desse razão aos tripulantes na questão dos retroativos, a companhia teria de os indemnizar. Pelos cálculos do Sindicato, nesta situação estarão entre 600 a 1000 pessoas. 

No entanto, a decisão do Supremo, que faz jurisprudência, também poderá ser aplicada nos casos que ainda estão em Tribunal. Por outro lado, também poderá ser invocada por outros 1000 tripulantes que foram admitidos desde 2006 e que poderão agora contestar na Justiça o facto de terem sido admitidos com contratos a prazo que o Supremo considerou inválidos.

PERGUNTAS E RESPOSTAS


O que está na origem da decisão do Supremo Tribunal sobre este caso?
Vários tripulantes da TAP queixam-se há anos de que os seus direitos laborais foram violados devido à recusa da empresa em passá-los para o quadro durante um período inicial de três anos em que tiveram contratos a termo. Cerca de 1200 tripulantes, que estavam a termo certo, foram dispensados em 2020/2021, devido à pandemia, sendo que muitos deles foram mais tarde reintegrados, em 2022, por necessidades da empresa. Nesses casos, por exigência do SNPVAC foi colocada uma cláusula nos contratos de trabalho onde se prevê que, em caso de decisão do Supremo que lhes seja favorável - considerando que deveriam ter sido integrados no quadro desde o início - esses trabalhadores terão direito ao pagamento de retroativos. 

Quais são os próximos passos?
A decisão do Supremo é unificadora, isto é, deverá servir de jurisprudência para os numerosos processos colocados por tripulantes da TAP contra a companhia. À partida, os tribunais de outras instâncias deverão seguir a decisão dos juízes do Supremo, embora em teoria possam não o fazer, em situações muito especiais. A previsão do SNPVAC é que os 1200 tripulantes dispensados em 2020/2021, reintregados ou não, possam reclamar os seus direitos na Justiça, caso não o tenham feito ainda. Por outro lado, o sindicato prevê que outros mil atuais ou antigos tripulantes, admitidos desde 2006, possam igualmente exigir ser compensados pelo facto de terem ingressado na empresa com contratos a prazo cuja validade é questionada.

Qual é o problema dos contratos a prazo celebrados com os tripulantes?
A contratação de trabalhadores a termo (certo ou incerto) apenas é permitida em determinadas situações, por exemplo devido a um acréscimo de atividade em determinado período. Os contratos de trabalho a termo que a companhia celebrou com os tripulantes nos últimos 18 anos seguirão, por regra, o mesmo “guião”, que não justificará, da forma devida, o recurso a este instrumento. A confirmar-se este entendimento, os contratos têm um “pecado original” que faz com que, à luz da lei, esses tripulantes devam ser integrados no quadro da companhia com efeitos retroativos, até ao primeiro dia de trabalho na TAP. O mesmo é dizer que a TAP terá de os indemnizar no valor da diferença que deixaram de receber em termos de ordenado e de os reintegrar no serviço, se for essa a vontade das pessoas em causa. Note-se que, dos 1200 tripulantes dispensados em 2020/2021, durante a pandemia, cerca de mil já terão sido reintegrados.

Em que medida este tema afeta a privatização da TAP?
O valor que a companhia tiver de pagar será considerado uma contingência a ter em conta no processo de privatização que o Governo pretende lançar em breve.

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