A contabilidade

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Consigo ver o meu quarto.

Ainda lhe sinto o cheiro, os vincos naquelas paredes meio velhas, os poucos brinquedos, e uma luz sempre algo obscurecida pelas grandes árvores que cercavam a nossa casa. Estava sozinho. A porta estava fechada, mas ainda assim, não me sentia seguro. Nada me fazia sentir salvaguardado. Os gritos pareciam fazer estremecer a estrutura do prédio, ou pelo menos, as paredes do pequeno segundo andar, daquela rua em Lisboa. O meu pai e minha mãe. Berravam um com outro, gesticulavam, apontavam o dedo na cara um do outro, como quem empunha uma arma para matar. Não os vejo agora, a porta mantém-se fechada, mas já vi e assisti àquela cena muitas vezes. Chegou o momento em que se estão quase a agredir fisicamente. Estava com tanto medo.

Com o terror a percorrer-me todas as veias do corpo levanto-me, abro a porta do quarto, caminho pelo corredor enquanto me sinto a aproximar do epicentro de uma batalha. Vejo-os. Tenho de olhar para cima. Para mim, são enormes, muito altos, parecem gigantes a gesticular a coreografia de uma guerra final. Sinto as lágrimas a escorrerem-me pela cara abaixo. Eu tinha medo, mas parecia que os tinha de proteger, tinha de os ajudar. Parem! Parem com isso! Gritei. Consegui meter-me entre os dois, mas nada os fazia parar. Senti-me a ficar sem ar, a visão a ficar turva, e as tonturas apoderarem-se de mim.

Devia apagar. A partir daí não me lembro de mais nada.

Talvez até fosse o lugar que passou a ser mais conhecido para mim: o Nada.

Na escola evitava os outros miúdos. E acho que tinha razões para isso. Magoavam-me. Com as coisas que me diziam, mas também, com tudo o que me fizeram. Uma vez levaram-me para o barracão velho atrás da escola. Nesse dia foi demais. Ainda me lembro de dizer ‘não’. Mas depois, é como se todas as luzes se tivessem apagado em mim. Habituei-me a esta espécie de normal. Que, nada verdade, eu era desde cedo, um ser estranho. Diferente dos outros. Uma nódoa ambulante. O mal estava em mim. Os outros não tinham estes problemas, e os outros miúdos riam, mas eu sentia a crueldade no seu olhar.

Hoje, sentado no meu escritório, tudo isto me parece inacessível. Mas está cá. Não penso nestas coisas, nem no meu quarto. Não consigo voltar ao que senti. Ninguém pode saber. Nem ninguém iria compreender. Os números, sim, são fiáveis. Esta minha profissão dá-me um pouco de abrigo. Recebo as coisas dos clientes, preparo-lhes a contabilidade, e raramente preciso de falar com alguém. Assim é mais seguro para mim. Pelo menos agora, na minha própria casa eu tenho silêncio, e as coisas estão todas no sítio. Não dizem que é bom apreciar as pequenas coisas da vida? Eu aprecio. Passo horas a ver se a casa está limpa. A dobrar a minha roupa, a tirar todos os vincos das minhas camisas, com o velho ferro que era da minha avó. Os detalhes são importantes e isso é uma forma de gozar a vida. No outro dia, a tia ligou-me e perguntou-me quando é que me casava. Já não pergunta se tenho namorada! Mas aos 49 anos esta vida assim é uma boa equação. É certo que quando me vejo ao espelho parece que os meus olhos são...indiferentes. Como se nunca mudassem de expressão. São planos! Mas eu gosto assim, eu sinto-me enquadrado desta forma. Para mim é como ter um balanço, como se o deve e o haver, estivessem equilibrados. A tia falava-me do que seria a vida quando fosse velho e seria bom ter filhos e uma mulher. Ter alguém comigo. É como se ela estivesse a comunicar noutra frequência. Quando eu for velho? Eu gosto é de sentir que esta semana será igual à anterior. Mas mais do que isso, ter pessoas por perto, é correr o risco de voltar a sentir. Uma vez, um dos poucos colegas com quem me privei de algum modo, disse-me que eu parecia um eterno aluado. Não sei exatamente o que ele queria dizer, mas eu não sinto que pertenço aqui. A este mundo. Não pertenço nem nunca pertenci. Não, não me interessa o futuro, não consigo nem posso perspetivá-lo. Para quê? Eu é que acho que as pessoas não sabem valorizar o essencial. Agora muitas vezes, no silêncio dos meus pensamentos, sou eu que me rio delas. Vejo-as como androides ambulantes, perdidos numa selva sem significado, onde as mais atrocidades acontecem em nome dos mais altos valores. Na verdade, para mim, é neste canto do nada onde me sinto mais enquadrado. Sim, mas enquadrado. Lugar onde o previsível é o valor maior e onde as contas batem certo.

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