Memórias do terror em Nir Oz contadas por uma sobrevivente
Acabam de partilhar comigo por WhatsApp uma recente reportagem da televisão canadiana no kibutz Nir Oz, a mostrar como a casa da família Siman Tov continua sem porta da rua e sem janelas, e ainda com as paredes negras do fogo praticamente um ano depois do ataque do Hamas. Imagens já no interior revelam a porta do chamado ‘quarto seguro’ cravejada de balas. Foi ali que o casal Yonatan e Tamar, as gémeas de cinco anos Shahar e Arbel e o menino de dois anos Omer, foram mortos. Lembro-me de ter entrado há cerca de três meses nessa casa, pisando cacos de loiça e vidros e restos de cadernos e livros espalhados pelo chão. Num canto vi um peluche chamuscado. E num cabide preso a uma parede estavam casacos meio queimados e cheios de poeira.
“Os terroristas chegaram pouco depois das 6.30. Entraram nas casas. Dispararam. E depois arrancaram as canalizações de gás na cozinha e deitaram fogo. Houve quem morresse baleado, outros pelo fumo”, contou-me no final de junho Irit Labau, ela própria testemunha do terror daquela manhã, e sobrevivente, tal como a filha de 22 anos, porque ficaram escondidas no seu “quarto seguro” até chegarem os militares israelitas. “Estivemos fechadas. E caladas o tempo todo. A bloquear a porta. O quarto seguro é para proteger do rockets. Não tem tranca. Durante o ataque ouvimos os terroristas falar em árabe. E depois fez-se silêncio. Passaram-se oito horas. E quando chegaram os soldados e ouvimo-los dizer em hebraico que nos vinham salvar, não deixei logo a minha filha sair. Pensei que fosse gente do Hamas que tinha aprendido a nossa língua para nos enganar”, contou Irit, que falou em inglês para um grupo de jornalistas que viajou em finais de junho até Israel a convite da Europe Israel Press Association (EIPA).
Em português, que aprendeu quando trabalhou no Brasil como criadora de joias, disse-me pouco depois que achou que ia morrer naquele dia: “Estávamos a trocar WhatsApp uns com os outros, sabendo o que se estava a passar nas outras casas do kibutz, e de repente havia gente que não dizia nada. De alguns, a última mensagem foi que estavam a disparar contra eles através da porta.”
O kibutz Nir Oz tinha perto de 400 habitantes. Sabe-se que 46 foram mortos e 71 levados como reféns para Gaza. O trauma entre os sobreviventes é tanto que quase ninguém regressou. Irit é uma exceção, não queria desistir do sonho de construir uma vida “neste oásis, com belos jardins, que continuamos a tratar”. Também é verdade que mais de metade das casas continuavam destruídas, e muito entulho por retirar, quando estive nessa espécie de aldeia comunitária a dois quilómetros da Faixa de Gaza. Ocasionalmente ouviam-se estrondos, provavelmente rebentamentos de bombas lançadas em Gaza pela aviação israelita. De um posto de observação junto à entrada do Nir Oz foi possível ver o território palestiniano ao longe, uma difusa imagem de edifícios cor de terra, e no meio uma enorme coluna de fumo negro a subir aos céus.
Irit fez-nos uma espécie de visita guiada pelo kibutz, fundado em 1955. O refeitório coletivo estava completamente destruído. Em parte, queimado. E vários vidros mostravam-se rachados, com círculos perfeito por onde tinham passado as balas disparadas pelas AK-47 dos milicianos do Hamas, o grupo palestiniano que faz hoje um ano massacrou mais de 1200 israelitas e levou outros 200 para o cativeiro em Gaza. Também foram levados estrangeiros que trabalhavam nos campos da rede de kibutzs que existem neste extremo noroeste do deserto do Neguev, muitos deles tailandeses que nos últimos anos vieram para substituir os trabalhadores palestinianos à medida que a desconfiança aumentava da parte dos israelitas, receosos de ataques terroristas. Longe vai o tempo em que se ía jantar nos restaurantes de praia em Gaza.
“Eu sempre quis acreditar que o Hamas e o povo palestiniano não eram o mesmo. Eu acreditava que a maioria das pessoas em Gaza queria viver em paz. Mas naquele dia de terror ouviam-se vozes de homens, de mulheres e até de crianças. Uns vieram para matar, outros para roubar. Levaram televisões, frigoríficos e fogões”, disse Irit. Confessou que estava com muita raiva. Que não percebia porque “ensinam logo desde criança que matar está certo.” A indignação da israelita, explicou-nos com voz trémula, era ainda maior porque fazia parte de um grupo de voluntários que ia de manhã ao posto fronteiriço buscar palestinianos para serem tratados nos hospitais de Israel. E levavam todos de volta a casa ao final do dia.
Irit continuou a percorrer o kibutz. Relatou mais algumas histórias de sofrimento. Muitos nomes difícil de fixar. Para ela são todos conhecidos de há muitos anos, alguns amigos, alguns até amigos muito chegados. Quando voltámos a passar junto da casa dos Siman Tov, onde fotografias na parede mostravam uma família sorridente que já não existe, acrescentou que Carol, mãe de Yonatan, que vivia no kibutz noutra casa, foi igualmente morta. Uma irmã de Yonatan, Ranae, contou numa reportagem da CNN que recebeu um último WhatsApp a dizer: “eles estão aqui. Estão a queimar-nos. Estamos a sufocar.”
Irit não quis falar sobre a guerra contra o Hamas, nem sobre a destruição de Gaza, nem sobre as dezenas de milhares de mortes entre os palestinianos (então eram já calculadas em mais de 30 mil, agora deverão passar das 40 mil). “O mais importante agora é chegar a algum acordo e libertar os reféns”, disse-me.
Tenho procurado acompanhar as notícias sobre Nir Oz. A 21 de agosto, houve um funeral no kibutz. De Avraham Munder, que tinha sido levado para Gaza e foi encontrado morto pelos soldados israelitas. Também de Roi, o filho, de Avraham, morto pelo Hamas a 7 de outubro de 2023 e que foi inicialmente sepultado noutro local de Israel. A família quis que pai e filho fossem enterrados lado a lado. Houve ali no funeral quem criticasse o Governo israelita por não chegar a um novo acordo de cessar-fogo com o Hamas, para tentar salvar mais reféns, sendo que uns 100 continuam em Gaza, 29 dos quais de Nir Oz, mas nem todos vivos. No único cessar-fogo que houve, em novembro, a mulher, a filha e o neto de Avraham foram libertados, numa troca por presos palestinianos em Israel que envolveu, entre outros, 40 dos sequestrados a 7 de outubro nesse kibutz.