O cogumelo mortífero
"O cogumelo atómico muito bonito resiste na memória de alguns habitantes de Semey, sobretudo contado pelos pais e avós que viviam, sem saber de nada, nas aldeias próximas do Polígono de Semipalatinsk, onde a União Soviética testou 456 bombas nucleares. Mas a cratera criada pela primeira explosão, a 29 de agosto de 1949, continua aqui, mal disfarçada pela vegetação da estepe cazaque. Assim como continuam os altos níveis de radioatividade, com o contador a apitar com insistência, apesar das garantias de Amir Kayirzhanov de que são normais.”
Iniciei assim uma reportagem publicada no DN há cinco anos, e Kayirzhanov era o técnico do Centro Nuclear Nacional do Cazaquistão, que vestido com um fato especial branco e com máscara para respirar - obrigatórios também para os jornalistas - me explicava que “normais” quer dizer 15 vezes mais do que seria admissível numa cidade. A mais próxima é a pequena Kurchatov, uma espécie de centro de investigação que tem o nome do cientista soviético que ofereceu a Estaline a tão ambicionada bomba atómica, mas é a 150 quilómetros, em Semey (antiga Semipalatinsk, ou “Cidade das Sete Casas” em russo) que, além de um museu dedicado a Fiódor Dostoiévski, a lembrar que o escritor ali viveu, há uma importante escola médica com uma sala cheia de frascos de formol com fetos com duas cabeças e outros exemplos de malformações atribuídas às radiações nucleares. Tirei fotografias, mas nunca tive a coragem de publicá-las.
“Foi uma luz enorme. Nunca tinha visto nada assim. A União Soviética não queria ficar atrás da América e foi a América que começou tudo”, disse-me Oshybayev Otegen, de chapéu tradicional cazaque, agarrado a um andarilho, misturando memórias de juventude com análise geopolítica. Encontrei-o num lar para idosos em Semey, onde uma divisão-museu guarda as condecorações dos que por ali passaram e eram veteranos da Grande Guerra Patriótica, que é como na Rússia, no Cazaquistão e noutras antigas repúblicas soviéticas se chama à Segunda Guerra Mundial.
Os cazaques, embora orgulhosos da independência alcançada em 1991, reclamam a sua quota-parte na vitória sobre os nazis e têm como herói nacional Raqymjan Qoshqarbaev, o primeiro soldado a desfraldar a bandeira soviética no Reichstag, em Berlim, em maio de 1945.
Ainda na era soviética, Nursultan Nazarbayev, que viria a ser o primeiro presidente do Cazaquistão, encerrou o Polígono de Semipalatinsk. E nas últimas décadas o país tem estado na primeira linha pelo fim dos testes nucleares e até pela erradicação das armas nucleares. O atual presidente, Kassim-Jomart Tokayev, quando era ministro dos Negócios Estrangeiros participou na discussão do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e assinou o Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares (CTBT). O país da Ásia Central, que tem as maiores reservas de urânio do mundo, desistiu do arsenal soviético herdado e milita por um mundo sem armas nucleares, mas discute agora se deve ou não construir uma central nuclear. Provavelmente, a decisão terá de ser por referendo.
O nuclear para uso civil continua tema de debate a nível mundial, sendo mais de 30 os países que têm centrais (10% da produção elétrica mundial) e havendo vários outros com planos de construção, mas em sentido contrário a Alemanha encerrou em 2023 os últimos reatores. Os argumentos a favor são o contributo para a redução da dependência do petróleo e do gás natural, os contra são os riscos gravíssimos em caso de acidente, o mais célebre de todos a ser o de Chernobyl, na Ucrânia ainda soviética, em 1986. Agora é a central de Zaporíjia, também na Ucrânia, que está no centro das atenções por se encontrar perto da linha da frente na guerra russo-ucraniana. Entre trocas de acusações, apesar de tudo tanto a liderança ucraniana como a russa têm-se mostrado responsáveis q.b., e a agência da ONU para a energia nuclear mostra estar vigilante.
Mas entre o nuclear civil e o nuclear militar há uma diferença enorme. O primeiro, apesar dos riscos, pode ajudar a Humanidade; o segundo pode destruí-la.
No polígono de Semipalatinsk, faz hoje 75 anos, a explosão controlada por Igor Kurchatov punha a União Soviética em plano de igualdade com os Estados Unidos, que desde 1945, quando lançaram as bombas sobre Hiroxima e Nagasáqui, detinham o monopólio atómico. Há historiadores que dizem ser a data do início da Guerra Fria, pois se a competição ideológica entre Moscovo e Washington começou ainda antes da Segunda Guerra Mundial terminar, nunca se tornou num conflito quente porque as duas superpotências que tinham capacidade de destruição mútua. E do resto do planeta.
Essa capacidade de destruição mantém-se. A bomba nuclear é até muito mais poderosa do que a atómica. O primeiro teste feito pelos americanos mostrou logo uma capacidade destrutiva muito superior à da Little Boy, a bomba de Hiroxima. Cientistas calculam que, hoje, uma bomba nuclear pode ser 1000 vezes mais forte do que a de 6 de agosto de 1945, que matou muitas dezenas de milhares de japoneses, forçando, depois do lançamento sobre Nagasáqui da Fat Boy (mais dezenas de milhares de mortos), à rendição incondicional do imperador Hirohito.
Se pensarmos que o arsenal nuclear global é, hoje, de cerca de 13 mil ogivas (americanos e russos juntos têm mais de 11 mil) e que são nove os países dotados dessa arma, é evidente que qualquer ameaça de uso por quem quer que seja é terrivelmente preocupante, mesmo que possa ser bluff.
Um estudo da Universidade de Princeton datado de 2019 apontava para 34 milhões de mortos e 57 milhões de feridos num conflito nuclear entre os Estados Unidos e a Rússia só nas primeiras horas. E um outro estudo do género, por uma organização de cientistas antinuclear, sobre um eventual conflito nuclear entre a Índia e o Paquistão previa, mesmo que confinado à Ásia do Sul, que teria um impacto no planeta tão grave que poria mais de dois mil milhões de pessoas em risco de fome devido ao efeito na atmosfera, o famoso Inverno Nuclear.
Por muitas dúvidas que se possa ter sobre a exatidão destas previsões, a dimensão dos números é suficiente para provar a gravidade de qualquer uso da arma nuclear, mesmo as alegadamente “táticas”, pois, além da questão da radioatividade, há sempre a possibilidade de uma escalada, mesmo que o arsenal global esteja longe do recorde da Guerra Fria.
Em Hiroxima já não se mede a radioactividade, felizmente. Nem em Nagasáqui. Mas, quando estive em ambas em reportagem, nunca ouvi nenhum japonês descrever como belos os cogumelos atómicos. Foi o único povo que sentiu na pele - literalmente - o poder destrutivo imediato do novo tipo de arma. Os cazaques, que viram as explosões na sua terra (116 das 456 foram à superfície), ignoravam o que era, e neles a radiação foi atuando ao longo dos anos. Conta o pintor cazaque Karipbek Kuyukov, que nasceu sem braços, que a mãe lhe disse ter observado vários desses cogumelos atómicos. Não sabia que eram mortíferos. Nenhum líder das nove potências nucleares pode alegar o mesmo.
Diretor adjunto do Diário de Notícias