Pedagogia penal, o que também falta

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Diversos titulares de cargos políticos e cargos públicos em Portugal foram constituídos arguidos e até acusados em processos criminais e mantêm o exercício das suas funções enquanto aguardam julgamento, designadamente autarcas e diretores-gerais. No âmbito das medidas de coação que podem ser aplicadas a um arguido, está consagrada na lei, neste momento, a proibição do exercício de “certas atividades ou funções, públicas ou privadas”, que pelos vistos não é frequentemente requerida pelo Ministério Público ou aplicada pelos juízes, provavelmente porque entendem que a destituição de um eleito, em exercício de um cargo político, deve ser apreciada em julgamento, perante provas e com contraditório.

Aliás, o Tribunal Constitucional já se pronunciou, em 2000 (acórdão n.º 41/2000, de 26 de janeiro), relativamente à possibilidade de ser decretada a suspensão do exercício de funções autárquicas como medida de coação, por parte de um presidente de Câmara, arguido, entendendo que violaria a Constituição uma interpretação que abrangesse o titular de cargo político, no caso autárquico, permitindo a suspensão das suas funções antes de julgamento. No entanto, em 2007, uma alteração ao Código de Processo Penal, promovida pelo Governo PS de José Sócrates primeiro-ministro e Alberto Costa ministro da Justiça, veio precisamente alterar a redação, no caso da alínea a) do n.º 1 do artigo 199.º, alargando o âmbito da suspensão de atividade -- e, pelo menos desde 2007, parece ser já possível, sem dúvida constitucional, que seja suspenso do exercício do seu cargo político enquanto decorra o inquérito alguém constituído arguido, por decisão de um juiz. Se tal sucede ou não, seria bom de se ver.

Neste momento, mesmo não exercendo nenhum cargo público, para além eventualmente da docência numa universidade pública, creio que sou arguido por conduzir a 58 km/h numa localidade com limite máximo de 50 km/h, mesmo não tendo sido eu o condutor desse carro, vendido por mim seis meses antes como retoma e não registado pelo novo proprietário -- sim, esta infração ao Código da Estrada implica a constituição como arguido. Sabemos, portanto, que é muito fácil ser-se constituído arguido e tem-se, aliás, vindo a compreender de forma mais alargada que esse é um estatuto de defesa e de lealdade processual e não necessariamente um estado infamante e pré-condenatório, como se ensina há muitos anos nas faculdades de Direito. Aliás, deve ser conhecido também que, segundo os dados estatísticos oficiais (2021), dos arguidos julgados em primeira instância em Portugal 33,1% foram absolvidos e 66,9% foram condenados, antes da apreciação de recurso. Não há, portanto, uma identidade óbvia nem expressiva entre a constituição como arguido e a condenação em julgamento, como é natural.

Dito isto... Tem um eleito, nacional, regional ou local, condições e legitimidade política para continuar em funções depois de ter sido constituído arguido ou acusado, antes de qualquer juízo definitivo de responsabilidade? A resposta da realidade tem sido uma -- depende. O que manifestamente não faz sentido é criar-se um ambiente em que qualquer início de investigação criminal corresponda a uma condenação geral e absoluta dos envolvidos. Isto é verdade para qualquer pessoa e não deve ser criado um contexto de populismo judiciário-penal que tem, na verdade, dois efeitos muito concretos: o de alimentar um discurso público populista e demagógico, antipolíticos, com expressão nas urnas; e o de afastar pessoas com qualidade e autonomia do exercício de cargos públicos, que não querem ver-se enlameadas nos jornais e nas televisões antes muitas vezes de se poderem sequer defender.

Juízes, Ministério Público e polícias devem fazer o seu trabalho. A nós, cidadãos, cabe-nos também fazer o nosso.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

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