"Nascido e criado em Lisboa, passei a minha infância, entre 1945 e os dez anos seguintes, no seio de uma família burguesa, de forma tranquila e pacífica. Entrado na adolescência, cedo me apercebi de que o regime político em que então vivia não era propriamente aquele em que desejava permanecer. Com a decisão dos meus pais de levarem os seus três filhos a residir em Cascais, devido “ao clima de perdição” que, no seu entender, se vivia em Lisboa. Meus queridos pais, nem sonhavam que nesse aspecto, o pior era o que se passava da Parede até ao fim da Linha. Aqui chegado, e à luz do que se passa nestes tempos, não me lembro de ter vivido com tanta liberdade como nesses sete ou oito anos que por lá passámos: andávamos nas ruas, muitas das vezes, até às 6.00 e 7.00 da manhã, boîtes e discotecas eram aos magotes. Havia para todos os gostos, tudo isto excluindo os sítios do fado.
Regressados a Lisboa, com um irmão na Guiné-Bissau e outro em Angola, ambos em comissão de Serviço Militar por via da guerra contra o terrorismo, vi chegar a década de 70 e com ela o meu casamento, indo viver para a Travessa de São Sebastião “à Praça da Flores”. Com a chegada do primeiro filho, mudámo-nos para a Rua Dom João V. Eu continuava a desejar que o regime político em Portugal mudasse para uma democracia, embora as regras da mesma fossem praticadas no meio que eu frequentava, o artístico. Não me lembro de alguma vez ter presenciado sinais de racismo relativamente a artistas africanos - e havia muitos.
Em 1969, houve um programa na RTP que ainda hoje é recordista de audiências. Falo do Zip-Zip por onde passaram “cantores de intervenção” como Francisco Fanhais, Manuel Freire, Carlos Alberto Moniz, Maria do Amparo, José Barata Moura, Pedro Barroso e Adriano Correia de Oliveira, entre outros. E a RTP pagava cachets a todos. Em 1971, na sequência de uma conversa em que o meu então produtor discográfico da Phillips se me queixou amargamente de que o regime de então o impedia de realizar um sonho de 20 anos, um grandioso festival de Jazz em Portugal, ajudei-o a cumprir o dito sonho. Portugal, creio, terá sido o único País da Europa, num regime de ditadura da direita, em que tal tenha acontecido.
Entretanto, o meu querido e saudoso amigo José Pracana, acordou-me na madrugada de 25 de Abril de 1974 para me dizer que estava em curso um golpe militar contra o Estado Novo. Arranjei-me rapidamente e saí para a rua. Passei pela Assembleia Nacional, pela Emissora Nacional e pelo jornal República, onde fui colher informações do que se estava a passar ao meu saudoso amigo Vítor Direito. Rumei até ao Largo do Carmo, com um cunhado meu, onde permanecemos até ao desfecho das negociações entre Marcelo Caetano e o MFA.
Cedo me dei conta pelo que li, vi e ouvi, de que o objectivo primordial do Golpe dos Capitães visava a entrega dos territórios na posse de Portugal, havia então cinco séculos, sabe Deus em que condições. Por outro lado surgiu de imediato uma parceria entre o MFA e o PCP para instaurar uma ditadura do proletariado no nosso País. Na verdade, em setembro desse ano fui avisado por uma vizinha de que o meu apartamento fora assaltado por um grupelho ostentando uma braçadeira vermelha do MDP/CDE no braço, na companhia de um bando de fuzileiros navais, levando com eles todo o recheio da casa que, a propósito, nunca me foi devolvido.
Em conclusão: não posso celebrar uma data que glorifica aqueles que então me destruíram a vida, a mim, à minha mulher e aos meus filhos. Os mesmos que me obrigaram a um exílio de 16 meses, só porque uma criatura com o nome de uma personagem de uma ópera de Verdi se lembrou de assinar um mandado de captura com o sítio do motivo em branco. Porquê? Por não haver motivo. Resultado: continuo à espera da sacrossanta democracia."
(Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles)