“50 anos depois da guerra, ainda há bombas por explodir no Vietname”
Qual é a parte das suas memórias pessoais neste livro? Mesmo sendo uma obra de ficção, conta muito a história do Vietname no século XX, e percebe-se que vive também, de certa forma, da sua experiência de vida.
Uma das minhas memórias mais antigas é de brincar dentro de um abrigo anti-bombas. O meu avô escavou esse abrigo no nosso jardim, sob os bambus, para se esconder das tropas francesas e depois para se esconder também das bombas americanas. Eu nasci em 1973, dois anos antes de a guerra acabar. E brincava lá porque o meu avô depois de 1975 manteve o abrigo em caso de haver mais uma guerra. Eu adorava esconder-me, porque era um sítio secreto, e costumava tocar as raízes do bambu e imaginar como seria para a minha família se tivesse de se esconder novamente no abrigo, e ficava um pouco assustada. Mas ao mesmo tempo, enquanto crescia, também sentia que precisava de saber mais da nossa história. Recordo-me de tantas mulheres na minha aldeia que estavam à espera do regresso dos maridos, dos filhos, dos irmãos. Muitos deles não voltaram até hoje. Há centenas de milhares de vietnamitas desaparecidos por causa da guerra, que acabou em 1975. Eu tenho amigos que ainda estão à procura dos pais.
A sua aldeia, tal como a da avó e da neta que são as personagens principais do livro, fica no antigo Vietname do Norte?
Sim, no norte do Vietname. Mas quando eu tinha seis anos o meu pai decidiu mudar a família para o sul. No sul do Vietname o clima é melhor e a terra é mais fértil.
Estamos já a falar de uma época depois da reunificação.
Sim, em 1979. Mudámo-nos quatro anos depois da guerra. Eu era muito pequena naquela época, mas lembro-me, quando ia no comboio para sul, de ver muitas crateras de bombas. Mais tarde, noutra viagem, escrevi num caderno que essas crateras pareciam pegadas de animais gigantes que tinham passado a correr, a fugir, por aquelas terras. Para mim, como criança, eu vi que havia tantas daquelas crateras, e que eram tão enormes. E também vi como o rio Ben Hai cortava o nosso país em Norte e Sul. Quando cheguei ao sul do Vietname, na primeira noite, quando nos sentámos para comer, houve barulhos no nosso telhado. Pequenas explosões. Os do Sul não gostavam de nós vindos do Norte. Achavam que estávamos a invadi-los. Tínhamos sido separados em dois países, mas já não era assim. E eu não compreendia porque éramos odiados pelos nossos vizinhos.
Mesmo que a divisão tenha durado pouco mais de duas décadas, isso criou uma diferença entre o Norte comunista e o Sul apoiado pelos Estados Unidos?
Sim. Fomos divididos em 1954 e a unificação aconteceu em 1975. Acho que o propósito de todos esses imperialistas, de todos esses ocupantes, foi envergonhar o Vietname, dividindo-nos. E tínhamos algumas diferenças na forma de falar, um sotaque do norte, outro do centro e outro do sul, mas éramos, somos, um só povo. Ainda hoje em dia, se alguém falar, sabemos se é do Norte ou do Sul. E essa guerra, que durou mais de 20 anos, foi terrível, foi um banho e sangue, matámo-nos uns aos outros.
Nos filmes de Hollywood, passa-se a ideia de que foi uma guerra dos americanos contra os vietnamitas, mas também foi uma guerra entre os vietnamitas.
Exatamente. Essa foi a parte mais dolorosa. Porque, como conto no livro, eram muitas as famílias que tinham membros a lutar uns contra os outros. Alguns membros das famílias estavam com o exército sul-vietnamita, outros estavam com as forças comunistas, com o Vietname do Norte.
É possível tentar identificá-la com a jovem Huong, mas, de qualquer forma, há duas personagens principais, a neta e a avó Dieu Lan. Por que escolheu estas personagens femininas?
Porque, normalmente, a história é contada através das vozes dos homens, e eu queria adicionar outra dimensão, a de um relato feminino. Queria destacar as relações nas famílias, e o trauma que é sofrido pelas famílias quando ficam divididas por zonas de combate. E também queria mostrar o impacto da guerra na natureza, na nossa cultura, nas nossas relações familiares, na nossa sociedade. Mas, mais pessoalmente, eu posso dizer que queria escrever este livro desde quando era muito pequena, porque ambas as minhas avós morreram antes sequer que eu fosse nascida. Então, por isso, sempre tive inveja dos meus amigos com avós. E um dia disse a mim mesma que quando crescesse tentaria escrever um livro com uma avó. E assim, de certa forma, teria uma avó.
Dieu Lan é uma mulher forte. É uma lutadora, capaz de tudo para salvar e manter unida a família. Essa é o tipo de mulher que encontramos no Vietname?
Sim, são assim. Mesmo que a avó Dieu Lan seja ficcional, muitos vietnamitas escreveram-me a dizer que ela era igual à avó deles. Quando eu era criança, ia para a casa dos meus amigos para ouvir as histórias das suas avós. E também entrevistei muitas pessoas mais velhas para poder escrever este livro. Centenas de pessoas. Eu queria documentar a história vietnamita através dos pontos de vista dos mais velhos. Porque, hoje em dia, no Vietname, avançamos muito depressa. O Vietname está a desenvolver-se muito rapidamente. E as pessoas estão focadas em construir uma carreira ou em ganhar dinheiro. E estamos a deixar a geração mais velha para trás. Sinto que a geração mais jovem não fala com a mais velha. Escrevi este livro com o desejo de falarmos mais uns com os outros, de continuarmos com a tradição de contar histórias.
Nguyên Phan Quê Mai
Alma dos Livros
360 páginas
19,45 euros
Mencionou que o Vietname está a desenvolver-se muito. É ainda um país oficialmente comunista, mas cada vez mais aberto ao mundo. O seu livro é sobre a independência, sobre a revolução, sobre a guerra e a reunificação. Depois de todo o sofrimento, de todas essas guerras, de todas essas dificuldades durante o século XX, olha para o Vietname como um país com um grande futuro?
Espero que tenhamos um futuro ótimo à nossa frente no Vietname. Mas também enfrentamos muitas dificuldades, na medida em que estamos a desenvolver-nos tão rapidamente que destruímos a nossa natureza. E as alterações climáticas estão a afetar muito o Vietname. Por exemplo, no delta do Mekong, a inundações estão a levar a nossa terra. E também a água do mar, a água salgada, está a invadir a nossa terra. Então, a vida torna-se muito difícil para os agricultores. Também destruímos muitas florestas por causa do objetivo do desenvolvimento. Por isso, acho que a proteção ambiental é algo em que precisamos trabalhar, e fazer com que o nosso desenvolvimento seja sustentável e beneficie todos as camadas da sociedade. A riqueza no Vietname está a crescer, é verdade. Há hoje muitas pessoas ricas no Vietname, mas os pobres permanecem pobres. Sobretudo nas áreas rurais, é muito difícil encontrar emprego. O Vietname está-se a desenvolver, mas não de uma forma equilibrada. Há muitas histórias sobre vietnamitas que arriscam as suas vidas para ir para a Europa encontrar emprego. Alguns até morreram fechados em contentores. Isso é muito triste. Então, acho que estamos a fazer um ótimo progresso, e aprecio muito a paz que temos no momento e a oportunidade de que nos chegue uma montanha de investimentos estrangeiros, mas o desafio para nós é desenvolver sustentavelmente, proteger o nosso ambiente, para garantir que o benefício do desenvolvimento chega a todas as pessoas.
Algo que impressiona quando pensamos na história do Vietname é que lutaram contra os franceses e ganharam; lutaram contra os americanos e ganharam. Até lutaram contra os chineses e ganharam. Quão forte é a sensação patriótica no Vietname?
Muito forte, muito forte. Como escrevi no livro, durante a guerra, as pessoas eram tão patrióticas que os mais jovens se voluntariavam para ir à guerra, e chegavam a cortar-se nos braços e usar o sangue para escrever cartas ao exército, a oferecer-se. Havia essa sensação de termos de salvar o nosso país. Tínhamos que lutar contra os invasores para salvar o país. A Guerra do Vietname é chamada por nós de Guerra de Resistência Contra os Americanos. Resistência para salvar a Nação. As pessoas eram muito patrióticas, e os comunistas eram muito bons a usar a poesia nas canções para motivar. Por isso há tantas canções patriotas.
O governo vietnamita hoje é mais nacionalista do que comunista?
Sim, é muito nacionalista, sim.
Recordo-me da visita de Bill Clinton ao Vietname em 2000, a primeira de um presidente americano depois da guerra.
Sim. Foi histórico, 25 anos depois da queda de Saigão. E Clinton tinha já normalizado as relações com o Vietname em 1995.
E hoje, como é que os vietnamitas olham para os americanos?
Eu cresci no norte do Vietname. Então, lembro-me que os americanos eram os nossos inimigos, eram vistos como malignos. E quando cheguei ao sul, descobri que a coisa mais preciosa que tínhamos em casa era uma ventoinha americana. Nessa época, raramente tínhamos eletricidade, apenas algumas horas por semana. Mas sempre que tínhamos eletricidade ficávamos muito excitados, porque estava muito calor e essa ventoinha americana conseguia refrescar-nos. O meu pai contou-me histórias de como os produtos dos Estados Unidos eram superiores. Ainda antes de termos a ventoinha, ainda antes de termos o primeiro frigorifico, contou-me que os seus amigos lhe disseram que os produtos americanos eram realmente bons. Então, mesmo se naquela época existisse o embargo comercial americano, os produtos mais populares eram os americanos. Eram vendidos a preços muito altos no mercado negro. Os turistas estrangeiros são bem-vindos ao Vietname. Somos muito acolhedores. E os americanos que hoje nos visitam são bem acolhidos. Em 2010, eu servia de intérprete para os veteranos americanos que estavam a regressar ao Vietname para ver o país onde tinham combatido, e alguns deles perguntaram-me, a chorar muito, por que os acolhíamos tão bem? Eu disse que nós entendíamos o impacto da guerra neles também. Muitos americanos voltaram depois da guerra, muitos veteranos tentaram reconstruir escolas, doaram o seu tempo e medicamentos aos hospitais. Muitos escritores escreveram sobre o Vietname. Então, acho que nós aprendemos a valorizar a humanidade do lado americano. Eu pessoalmente não tenho nada contra os americanos, mas acho que o governo americano tem que fazer mais para ajudar o Vietname, em termos de eliminar bombas não explodidas da guerra. Ainda há tantas bombas, ainda estão escondidas na terra no Vietname, e as pessoas continuam a morrer por causa disso.
Ainda há pessoas a morrer por causa de bombas lançadas nos anos 1960 e 1970?
Sim. Mesmo 50 anos depois do fim da guerra, ainda há tantas bombas por explodir no Vietname. Porque os americanos largaram tantas bombas, que muitas ainda estão nas selvas ou em áreas que nós não podemos cultivar, porque é muito perigoso. Então, as pessoas ainda estão a morrer por causa dessas bombas. Recentemente, uma mulher estava a andar de bicicleta, a caminho do trabalho, e houve uma explosão no campo, porque alguns camponeses estavam a queimar uma árvore. Eles cortaram a árvore e queimaram-na e então deu-se uma explosão, ela morreu porque ia a passar. Tenho também escrito vários artigos sobre o impacto do Agente Laranja no Vietname. Ainda há milhões de pessoas que vivem sob o impacto do Agente Laranja. Esse químico foi espalhado no Vietname durante a guerra, e agora está na água, está no solo, e ainda há zonas onde não se pode viver perto, porque a área está contaminada. Mas o impacto está em todo o lado no Vietname, e enquanto eu crescia, havia peixes deformados, e nós não sabíamos, e comíamos esses peixes. Se pesquisar no Google por Agente Laranja e o meu nome no New York Times, encontrará esses artigos. Porque acho que essa é uma área em que a América deveria fazer muito mais. E eu estou tão irritada por não exigirmos mais.
Há muitos livros e filmes sobre o impacto da guerra na América. Um livro como Quando As Montanhas Cantam tem o mérito de mostrar o trauma no Vietname?
No Vietname, o ponto de vista oficial é que nós ganhámos a guerra, e portanto não há trauma. A guerra é considerada muito heróica. Mas, na verdade, conheço veteranos que estão traumatizados até hoje. Tenho um amigo que lutou na guerra, e hoje não pode dormir com a ventoinha no teto ligada, porque quando ele vê a ventoinha pensa em helicópteros tentando atingi-lo. Nos meus livros eu quero apresentar o Vietname além da guerra, como uma cultura, como uma nação antiga. Temos um país com mais de 4000 anos de história.