Os sistemas de saúde em mudança: para onde vamos?
Vivemos hoje, a ritmo acelerado, mudanças sensíveis nos sistemas de saúde.
As razões têm a ver, não só com a evolução da ciência e da tecnologia médica, mas também com a demografia, a economia, a qualidade dos cuidados e as expetativas dos cidadãos.
A ideia central é responder cada vez melhor e em tempo oportuno às necessidades das pessoas, num processo em que a comodidade, a proximidade e a informação se associam aos bons resultados que todos esperamos obter quando estamos doentes.
Neste contexto, destacaria 3 áreas em que a evolução tem sido mais significativa:
1. A integração dos cuidados
A visão hierarquizada da prestação de cuidados – primários, hospitalares e continuados – tem dado lugar a formas integradas centradas no doente e não nas especialidades médicas ou nas profissões de saúde. É um enorme salto qualitativo, que implica mudanças de natureza cultural, organizacional e funcional, que exigem tempo, maturidade, conhecimento e método. É, por isso, uma tarefa pesada, que exige perseverança nos propósitos, espirito de iniciativa e liderança forte. Mudanças na organização dos serviços, trabalho em equipa, conjugação de horários entre diferentes profissionais e a utilização de novos indicadores de avaliação do desempenho, implicam adaptar os interesses específicos de cada um ao interesse geral implícito no novo modelo.
De facto, de um modelo de saúde centrado em atos médicos e resultados intermédios imediatos passamos a privilegiar objetivos nos ganhos que conseguimos consolidar a cada pessoa, numa perspectiva global da sua saúde e do seu bem-estar. Hoje, com o envelhecimento, é comum que uma pessoa de idade avançada seja portadora de várias doenças em simultâneo. Um doente internado num serviço de medicina interna dos nossos hospitais apresenta, em média, 10 a 12 diagnósticos diferentes o que diz bem da variedade de patologias associadas na mesma pessoa e da necessidade óbvia de abordar de forma integrada a sua situação. O impacto que isso tem na evolução do doente, na conjugação de intervenções de natureza transdisciplinar e na diversidade de formas de prestação, mais institucionalizadas ou mais ambulatórias, implicam a constituição de equipas clínicas plurais e uma diversidade dos locais de intervenção (no hospital, no centro de saúde, no domicílio, nos cuidados continuados ou num lar). A inclusão do digital na partilha de informação clínica uniformizada em locais diferentes de prestação é aqui matéria de crucial relevância.
2. As remunerações dos profissionais
Também aqui os novos desafios são evidentes, nomeadamente no caso português, em que o modelo público se encontra estiolado há muitos anos em carreiras e remunerações desligadas da realidade e que todos contestam. É hoje comum em muitos países e no setor privado em Portugal, ter modelos remuneratórios baseados no mérito e nos resultados de cada prestador, que não são obviamente iguais para todos e discriminam positivamente as melhores práticas e os melhores resultados. São modelos de incentivos, cuja arquitetura se deve basear em objetivos específicos ou gerais que se querem atingir para o doente e para a sociedade. Por exemplo, reduzir tempos de espera para cirurgias ou reduzir taxas de complicações em doentes internados. É um tema que deve ser tratado com as ordens profissionais, nomeadamente quando estão em causa políticas públicas para a saúde, como sejam a definição de prioridades, a adoção de boas práticas ou a segurança dos doentes.
Os modelos remuneratórios baseados em horas de trabalho não permitem criar condições para estimular o cumprimento de objetivos e a utilização eficiente dos recursos. No caso português, o consumo de horas médicas em urgência é excessivo face às necessidades do país, quando parte substancial desse tempo poderia ser utilizado, com vantagens, na abordagem de doentes complexos e programados, em consulta ou em internamento. Assim se proporcionaria mais acesso e se reduziriam as listas de espera. Os estímulos atuais, premiando as urgências, estão manifestamente errados e só agravam os problemas.
3. O modelo de financiamento
Os critérios até agora utilizados para financiar os hospitais públicos são essencialmente baseados na atividade realizada (consultas, internamentos, urgências, sessões de hospital de dia, cirurgias, etc.). Nos cuidados primários os critérios pretendem ter em conta a rapidez do acesso e alguns objetivos de controlo e acompanhamento de algumas patologias, já com incentivos associados, infelizmente pouco alinhados com as necessidades e conforto dos doentes. São dois modelos radicalmente diferentes, incompatíveis com uma visão integrada da saúde e da doença e o continuo de cuidados adequado a cada doente. A constituição generalizada de ULS veio colocar na ordem do dia os critérios de financiamento tendentes a um modelo integrado baseado na manutenção da saúde e não apenas na abordagem das doenças. Os novos objetivos assentam na diminuição da carga de doença e na promoção da saúde e da qualidade de vida. Envolvem novos agentes de mudança para além do sistema de saúde, com o ambiente, a educação, o emprego, as condições de habitação e os hábitos de vida a assumirem cada vez maior protagonismo.
O modelo de avaliação das ULS irá sofrer uma profunda alteração, passando a ter como orientação principal os ganhos em saúde obtidos para os cidadãos. Para isso, o Estado adquiriu uma ferramenta de avaliação da carga de doença de cada cidadão, num processo integrado de estratificação do risco de determinada população. Esse modelo serve de base para a distribuição dos recursos financeiros pelas diferentes regiões do país. A capitação usada para o financiamento deixa de ser baseada apenas no número e na idade das pessoas, mas passa a ponderar também os riscos associados a cada cidadão. Este modelo é um enorme desafio para as instituições de saúde, porque pretende premiar mais o facto de ter pessoas saudáveis e uma trajetória de diminuição da carga de doença do que a produção de atos médicos. Esta nova perspectiva, mais proativa e menos reativa, altera a visão estrita com que habitualmente encaramos o sistema de saúde, isolado e autossuficiente, e abre as portas a uma colaboração próxima com os sistemas de educação, com as autarquias, com a habitação, com o deporto e lazer, etc.
Estamos numa grande encruzilhada, em que parece que o futuro não trará recuos nas transformações já encetadas, mas em que o mais importante está ainda por fazer. Forte determinação política e empenhamento numa visão de médio e longo prazo sobre a Saúde, são apostas essenciais neste processo verdadeiramente transformador. Uma Saúde de proximidade, menos institucionalizada e relacionada com as determinantes da vida em sociedade, fazem parte desse futuro. Assim tenhamos a capacidade de a reformar.
Ex-secretário de Estado da Saúde