Assédio. Boaventura Sousa Santos quer regressar ao CES enquanto o inquérito continua
Boaventura de Sousa Santos quer voltar a assumir as funções que exercia no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. O sociólogo decidiu levantar a autossuspensão das suas funções no CES, que ocorreu na sequência das denúncias de assédio sexual e moral e extractivismo intelectual de que foi alvo num capítulo de um livro académico sobre condutas sexuais inapropriadas na academia (Sexual Misconduct in Academia, publicado em março de 2023) e que tiveram ampla repercussão mediática em Portugal e no estrangeiro.
A intenção de Boaventura de Sousa Santos foi comunicada esta terça-feira pela própria direção do centro em reunião de assembleia presidida pelo vice-reitor da Universidade de Coimbra, segundo o DN apurou junto de membros daquela instituição. E surge pouco mais de um mês após ter sido tornado público o relatório da comissão independente encarregada de analisar as denúncias e de ouvir as alegadas vítimas.
O argumento que estará a ser utilizado pelo diretor emérito do CES para justificar o fim da sua suspensão é o de não lhe terem sido individualmente apontadas acusações diretas no relatório nem terem sido citados nomes, mesmo que o relatório sustente indícios consistentes de assédio e abuso de poder por parte da direção do centro. Sob suspeita encontra-se não apenas Boaventura de Sousa Santos, mas também o investigador Bruno Sena Martins.
No mesmo dia da divulgação do citado relatório, a 13 de março deste ano, o professor já tinha dado alguns sinais neste sentido quando reagiu publicamente dizendo-se pessoalmente “mais tranquilo do que há um ano”, embora lamentando que não houvesse ainda “um verdadeiro esclarecimento”.
Mas a verdade é que ainda esta semana, na reunião de assembleia de 30 de abril, “uma das nossas colegas relatou tudo o que o Boaventura de Sousa Santos lhe fez com nomes e factos”, revelando “muita coragem”, disse uma fonte ouvida pelo DN.
Em causa está uma das investigadoras já listadas no grupo de alegadas vítimas, que diz ter sofrido assédio moral e sexual por parte do reputado sociólogo, atestou outra fonte. No total, a lista de denunciantes ascende a 32 pessoas.
Em reação, o diretor emérito enviou um email esta quinta-feira a colegas do CES a refutar as alegações: “Nessa assembleia foram feitas acusações a meu respeito tão gravemente injuriosas quanto falsas. A resposta a elas será dada no tempo adequado”, disse.
Boaventura apelou ainda à confiança na sua inocência: “Por agora peço-vos apenas a presunção de inocência, como é próprio de uma sociedade democrática e que aguardem serenamente pela investigação e julgamento dos factos.”
Seja como for, a atual direção do Centro de Estudos Sociais já fez um pedido de desculpas público às vítimas por eventuais danos, na medida em que a comissão independente também apurou alguma negligência e leviandade por parte de direções anteriores na abordagem a prévias suspeitas de assédio.
Em 2017, por exemplo, já tinha havido pichagem de paredes do CES com frases insinuantes que não tiveram tratamento consequente. Nessa carta aberta, a instituição disse também estar em avaliação a possibilidade de serem abertos processos disciplinares aos denunciados (cujos nomes lhe foram revelados pela comissão independente), algo que se encontra em fase de inquérito. Entretanto, foi também tornado público que a direção do CES entregou o relatório ao Ministério Público e que este abriu inquérito.
Da análise de toda a informação reunida, a comissão independente concluiu por “padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”.
O relatório confirma ao longo de 114 páginas a existência de indícios de assédio sexual, ainda que os autores refiram não ser possível assegurar a veracidade de todas as situações comunicadas à comissão. Foram denunciadas 14 pessoas por 32 denunciantes, sendo que 28% dizem respeito a casos de assédio moral, 19% a assédio sexual, 8% a abuso sexual, 27% a abuso de poder.
Questionada pelo DN sobre o estatuto laboral de Boaventura Sousa Santos, após o relatório e a retirada da suspensão, a direção do CES foi lacónica. “Está em curso um processo prévio de inquérito com vista ao apuramento de todos os factos concretos e seus agentes, por forma a determinar eventuais irregularidades e suas consequências, designadamente disciplinares laborais e/ou estatutárias”, refere.
Pelo que “até ao pleno funcionamento da nova política institucional de combate e prevenção do assédio e abuso, continua em funcionamento a Provedoria do CES e o seu canal de denúncias, sendo adotados os procedimentos aplicáveis em caso de infração disciplinar ou estatutária”.
A direção diz ainda que vai tomar as medidas ao seu alcance na defesa dos direitos humanos e de transparência. O DN contactou Boaventura de Sousa Santos, por email e telefone, para o questionar sobre o assunto, mas não obteve resposta até ao fecho desta edição.
Entretanto, o livro Sexual Misconduct in Academia (Conduta Sexual Imprópria na Academia) que esteve na origem de todo este processo, surgiu de novo no site do grupo editorial internacional Taylor & Francis, depois de a respetiva página ter sido apagada e de aquele ter assumido, em 22 de setembro de 2023, a "despublicação" por motivos legais. Questionado pelo DN, o grupo editorial garantiu, através do seu gabinete de comunicação, que nada mudou, e que o livro continua a não estar disponível para venda.
Em causa na "despublicação" do livro está o referido capítulo/denúncia, da autoria de três investigadoras (a belga Lieselotte Viaene, a portuguesa Catarina Laranjeiro e a americana Miye Nadya Tom, que passaram todas pelo CES), com descrições de episódios de assédio sexual e moral num centro de investigação académico.
Ainda que o capítulo, intitulado “The walls spoke when no one else would" (As paredes falaram quando mais ninguém se atrevia - aludindo às mencionadas pichagens nas paredes do CES) não referisse nomes, ou sequer o país onde se sediava a instituição em causa, o próprio Boaventura de Sousa Santos admitiu ao DN, em abril de 2023, que o centro descrito é o CES e que a personagem crismada de "Professor Estrela" se refere a si, reputando de difamatórias as acusações de que ali é alvo e ameaçando processar as autoras.
Nota: texto alterado a 4 de maio de 2024 para incluir a resposta da casa editorial Taylor & Francis às perguntas do DN.