Tino de Rans: a rebelião das massas

Tino de Rans: a rebelião das massas

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No volume oitavo de Portugal Antigo e Moderno. Dicionário Geográfico, Estatístico, Corográfico, Heráldico, Arqueológico, Histórico, Biográfico e Etimológico de Todas as Cidades, Vilas e Freguesias de Portugal, De Grande Número de Aldeias Se Estas São Notáveis Por Serem Pátria de Homens Célebres, Por Batalhas Ou Outros Factos Importantes Que Nelas Tiveram Lugar, Por Serem Solares de Famílias Nobres, Ou Por Monumentos de Qualquer Natureza, Ali Existentes. Notícias de Muitas Cidades e Outras Povoações da Lusitânia De Que Apenas Restam Vestígios Ou Somente a Tradição, o erudito Augusto Soares de Azevedo Barbosa de Pinho Leal, ou só Pinho Leal (1816-1884), explica que Afonso III, de Leão, com justiça cognominado o Grande, deu, "por motivo de serviços", ao seu parente mui próximo, D. Hermenegildo, conde do Porto e de Tui, o lugar de Bordalo, no qual se encontra a honra de Barbosa, do ano de 866, a qual se conservou em seus descendentes até 1420, data em que foi comprada por D. João de Azevedo, bispo do Porto, passando depois aos Azevedos Athaydes, mais tarde Azevedos Athaydes Malafaias, que a mantiveram até 1834, data em que foi extinta.

Teve o conde D. Hermenegildo por filho D. Guterre Mendes Arias, conde do Hermínio e Cela Nova, governador do Porto nos anos de 924 e seguintes, além do célebre São Rosendo, bispo de Dume, D. Afonso Guterres, e D. Nuno

Guterres, ambos condes de Cela Nova, Santa Adosinda, abadessa, e a paternal D. Paterna. Estamos, portanto, ao século X, coisa menos coisa.

Informam-nos outras crónicas que a honra de Barbosa terá sido criada na primeira metade do século XII por D. Mem Moniz de Ribadouro, da Quintela da Lapa, irmão do célebre Egas Moniz, e filho, pois, de Monio Emiges de Ribadouro e de Meana D. Ouroana, ou seja, e portanto, neto de Ermígio Viegas e bisneto de Egas Moniz, o Gasco, sendo D. Mem Moniz casado com Gontinha Mendes, filha do magnate Mem Viegas de Sousa, havendo também pelo meio um D. Pedro Anes "de Riba de Vizela", uma D. Urraca Afonso, uma abrilina D. Urraca Abril "de Lumiares" e um D. Martim Afonso de Sousa Chichorro I, o qual, como se sabe, era filho bastardo da abadessa de Arouca, D. Aldonça Anes de Briteiros, e do Martim Afonso Chichorro, um rico peralvilho [cf. Augusto-Pedro Lopes Cardoso, "Honras e Coutos: o contributo do Livro do Milhão, a honra de Barbosa e o couto do Bustelo", Cadernos Vianenses, n.º 23, 1998, pp. 113-148, Id., "A Honra de Barbosa. Subsídios para a sua história institucional (século XII-1834)", Cadernos do Museu, nº 10, 2005, pp. 211-253].

Passados mais de mil anos, hoje é tudo gente morta, para lá de esquecida. Actualmente, Rans, concelho de Penafiel, a terra que hospeda a velha Honra dos Barbosa, é somente conhecida - e consta do mapa - por obra e graça de um outro seu filho ilustre, o Tino, abreviatura político-sentimental de Vitorino Francisco da Rocha e Silva, que aí nasceu e foi registado aos 19 de Abril de 1971, o sexto de oito irmãos, definido nas enciclopédias como "calceteiro, personalidade televisiva e autarca".

Ainda assim, espanta e assombra que há mais de um milénio se falasse já de um Guterres, ou mesmo de dois ou três: D. Guterre Mendes Arias, nobre galego, cunhado do rei Ordonho II; Rosendo Guterres, ou São Rosendo, bispo de Mondonhedo e de Santiago de Compostela; Adosinda Guterres, mãe da rainha Velasquita Ramires, esposa do rei Vermudo II, e, enfim, Afonso Guterres e Nuno Guterres, ambos dons. Volvidos tantos e tantos anos, mais de mil, seria também um Guterres, este António e de Donas, quem daria o palco e a fama a Vitorino/Tino de Rans, ou Rãs, que, com eles, o palco e a fama, gravaria vários êxitos musicais, com destaque absoluto para "Pão Pão, Fiambre Fiambre", que começa e reza assim:

Hi everybody I am Tino,

the calceteiro man

Rewind, Selecta!

Let"s reggae

One, two, three, four

Pão-pão-pão-pão-

-pão-pão

Com manteiga é tão bom Pão-pão-pão-pão-

-pão-pão

Yeah, yeah

(comentário de @vitormanuel8638 no YouTube: "Muito Bom")

Também do disco Tinomania, sucesso de 2009, realce para o Fado Calceteiro, cuja letra, ao modo dos cantares d"amigo, fala de um baile para os lados da Pesqueira ao qual comparece uma jovem, "linda menina, donzela perfeita/Cinta de vespa, passos de gazela", que é sucessivamente assediada por um Engenheiro, por um Capitão e por um Doutor, mas acaba dando bola para um calceteiro, o qual, para fins inominados, e à maneira medieva, a encosta a uma parede, certamente muralhada:

O baile já terminara,

Muita dança, tanta sede.

Depois de grande roço,

Encostei-a à parede.

A consagração de Tino de Rans (ou, se quisermos, a sua entrada na esfera pública, a corte dos nossos dias) aconteceu no ano de 1999, era de Cristo, num congresso do Partido Socialista, por sinal o XI, no qual Vitorino Silva, assomando ao púlpito e ao microfone, tomou a palavra e, com ela, animou as hostes republicanas, desconcertando-as, e culminou abraçado ao actual secretário-geral da ONU, à época tão-só primeiro-ministro da terra onde tudo isto se passa e processa. Terra que nem sequer existia no tempo dos velhos Guterres, funduras da Idade Média, e que hoje, provavelmente, também já deixou de existir, sem que nos tivéssemos apercebido ainda da sua irremissível extinção. Em todo o caso, no arco temporal percorrido entre uns e outros Guterres houve um país de permeio, aconteceu Portugal, nação nossa e de Tino, rapaz sagaz e finíssimo, mestre do self-deprecating, génio da frase curta, samurai da metáfora, apresentado nas presidenciais de 2021 como "o mais filósofo dos candidatos", num programa em que se disse "aleixista" e afirmou, com engenho e estrondo, "Eu nunca vi uma multidão a pensar" (e também, já agora: "não podemos ser ingénuos, porque há muito cabrão por aí", a "tecnologia é criada para matar a ideologia", "a educação é a base de tudo", "a caneta é como a roda, nunca vai passar de moda", "há ministros que se concorrerem na terra deles não têm sequer o voto da família" ou "a comunicação social quer é sangue").

Adora línguas de bacalhau e tem Cristo como referência política, porque também Ele incomodou o seu tempo, confessava-se a D. Manuel Martins, prelado setubalense, que lhe prefaciou o primeiro livro (De Palanque em Palanque, de 2005, edição de autor), e diz-se "católico preguiçoso" ou "culturalmente católico", dado o fascínio que lhe causam, ao entrar numa igreja, "aquele trabalho da madeira, os torneados todos, aqueles vitrais". Casado e fiel, segundo as máximas "difícil não é ter muitas, é manter uma" e "já para arranjar aquela vi-me lixado", chama à filha "o meu semáforo" e diz querer ficar na História como "o pai da Catarina", algo que ninguém lhe disputa, como ninguém disputa, antes coonesta, a "profunda vergonha" que sentiu ao ver os seus adversários insultarem-se uns aos outros na refrega da campanha. Por isso, resistiu aos que lhe aconselhavam a atacar André Ventura nos debates televisivos ("casca no gajo, manda-o pró c...!"), mas esmagou-o no final de um deles, em que distribuiu seixos apanhados no mar, de várias cores, em sinal de diversidade e multiculturalismo ("como o mar traz pedras de todas as cores, Portugal também tem portugueses de todas as cores"), e rematou dizendo querer ser "presidente de todos os portugueses", em claro contraste com o candidato do Chega, que só quis os votos dos cidadãos "de bem", que tão escasseiam entre as suas hostes.

Nessa campanha, presidenciais de 2021, afirmou, com pontinha de exagero e certa gabarolice, que, de todos os candidatos, era o que tinha mais obra publicada. Entre ela, De Palanque em Palanque, já citado, Há Pressa... - Um jornal da mesinha de cabeceira e de estante, de 2011, A Corda... para a Vida, de 2019, lançado em Nova Iorque, com um exemplar doado e dedicado à New York Public Library, e A Troika em Portugal, do qual só foram feitos três exemplares, com as páginas todas em branco, ilustrando o que a comissão tripartida terá feito, ou não feito, pelo bem de um Portugal à rasca.

Não gosta que lhe chamem "cromo", mas aprecia brincar com o rótulo, desconstruindo-o, tirando partido dele, e é mais, muito mais, do que um bom selvagem, ainda que as suas qualidades pessoais e políticas - a transparência de propósitos, a genuinidade do verbo e do pensamento, o desarmante nonsense, a sabedoria telúrica, não isenta de banalidades e lugares-comuns - se tenham mostrado escassas para alcançar os cargos que almeja e a que se tem candidatado, como o de presidente da câmara de Valongo (nas autárquicas de 2009, 4,96% dos votos), Presidente da República (3,28% dos votos em 2016; 2,94% em 2021), vice da edilidade de Penafiel (em 2021, coligação PS-RIR, com 30,93% dos votos, metade dos obtidos pelo PSD/CDS), deputado pelo Porto (legislativas de 2022, 0,73% dos votos, abaixo dos 1,18% de 2019).

Para uns, mais cínicos, tudo passos maiores do que a perna, ou a concretização do dito confuciano de que a queda é maior quanto mais alto se sobe, sugerindo-se em surdina que Tino deveria ter optado por voos mais rasteiros, mais calceteiros, mantendo-se na presidência da junta de Rans, para a qual foi eleito em 1993 e em 1997, e onde parece ter sido feliz, pois, assim como assim, ali sempre há uma honra, a dos Barbosas e a sua. Para outros, mais cínicos ainda, Vitorino Silva não passa de um espertalhão, no mínimo igual àqueles que tanto vitupera e critica, um narciso doido pelos holofotes, que lhe vão dando fama e ganho, razão pela qual tem intervalado a política com mil e uma actividades, todas elas mediáticas: participação no programa "Noites Marcianas", da SIC; entrada na "Quinta das Celebridades", da TVI, em 2005; um disco e vários concertos; "Big Show Vip", exibido pela TVI em 2013. Em Março de 2021, começou a fazer livestreams na plataforma Twitch, patrocinado pela marca de videojogos Razer, cujo CEO, Min-Lian Tan, o elogiou como "um candidato presidencial com bom gosto em produtos gaming".

Em 2019, fundou o partido RIR - Reagir, Incluir, Reciclar, de cuja direcção se demitiu em 2022, para dar lugar a uma nova líder, Márcia Henriques, a qual considerou, com o eufemismo tão próprio da política, que "os objectivos não foram atingidos", referindo-se aos resultados do partido nas últimas legislativas, 0,43% dos votos (abaixo dos 0,67% nas eleições de 2019). Em face disto, achou-se chegado o tempo "de passar a pasta", observou Márcia Henriques, que no seu trabalho futuro, certamente árduo, contará com o apoio dos vice-presidentes Paulo Pereira, Diogo Reis e Preciosa Baptista, esta insubstituível. Mais disse a líder que Tino continuará a dar o seu contributo e a manter-se activo no partido, desde logo como membro da sua assembleia-geral, não poupando, todavia, as farpas ao antecessor. Disse, então, que o partido não poderia "passar só por uma pessoa, que é o que tem acontecido", que era necessário "um discurso mais político", que o coitado do Tino "muitas vezes não era compreendido nas parábolas" e que, enfim, o RIR necessitava, quiçá como pão para a boca, de "uma mensagem mais estruturada, mais forte, mais directa para que as pessoas entendam." Aguardemos, pois, até porque, como o país vai andando, há muito espaço e caminho para o R.I.R. Em hibernação estratégica ou travessia no deserto, Tino de Rans afastou-se da política, até ver, mas, possivelmente, ressurgirá das cinzas e do anonimato logo que surja um novo acto eleitoral, o que, diz-se, poderá acontecer mais cedo do que julgamos. Com ele, é sempre até já.

A irrupção de Tino de Rans na política portuguesa, desde que num congresso partidário subiu a um palco de onde nunca mais saiu, poderá ser vista, talvez, como um expressivo indício da rebelião das massas de que falava Ortega, uma realidade a que outrora chamavam democracia, e agora se diz populismo. Macaco, Tino terá percebido que, tal qual como nos tempos medievos, há sempre bobos nas cortes e que aos barões e notáveis interessam alguns tinos como ele, até para mostrar que os partidos não são só coisas de elites, que neles existe abertura ao novo e ao povo. Não sendo um bon sauvage, como atrás se disse, Tino de Rans é, em todo o caso, um populista bom, ou melhor, um bom populista, ainda que pouco credível e, logo, pouco eficaz na concretização dos seus objectivos. A menos que, digamos, tais objectivos não sejam chegar aos lugares a que se candidata (e para os quais, no seu íntimo, provavelmente não se sente capacitado), mas tão-só participar, concorrer, gozar o prato e a festa em puro ludismo político ou vezo de notoriedade. Tino tem a sageza, contudo, de intuir o efémero das luzes e de afirmar que a sua maior obra foi Catarina, uma estudante brilhante, aluna de vintes, de quem fala amiúde, referindo-se enternecido às lonjuras a que chegou "a filha do calceteiro". Em mil anos, de facto, alguma coisa mudou: nos tempos do feudalismo, Catarina Silva dificilmente sairia de Rans e da gleba. Agora, consta que até estuda em Birmingham, com um pundonor e um brio maiores do que as honras dos Barbosas e dos Athaydes com ípsilon e tê-agá. Mudou muito o mundo, sem dúvida, e sem dúvida para melhor, ao menos nestes aspectos, mais justos e mais democráticos. E o Tino, a seu modo, humilde e probo, contribuiu para tais mudanças do mundo, deu os genes para o milagre, pagou a formação e os estudos da Catarina, razões mais do que suficientes para que lhe agradeçamos e muito, mesmo que não lhe demos o voto, ou sequer a confiança.

*Prova de vida (26) faz parte de uma série de perfis

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