Música dos Genesis tocada no sítio do Nova Festival para lembrar os mortos e os sequestrados
Um homem toca saxofone junto de uma árvore onde está presa a fotografia de um dos mais de 40 sequestrados pelo Hamas no Nova Music Festival a 7 de outubro. O jovem da imagem, Guy Gilboa Dalal, que fez 23 anos já no cativeiro em Gaza, não é, porém, filho ou neto do saxofonista, e estas músicas que se ouvem durante a manhã aqui, no semidesértico sul de Israel, não homenageiam uma vítima em especial do massacre, que fez mais de 360 mortos, e muitos, muitos feridos. “Toco por todos. Penso em todos eles. Nos que foram mortos naquele dia, nos que estão ainda raptados em Gaza, nas famílias que sofrem”, diz Arnon Lahav, de 70 anos, que vive em Be’er Sheva, cidade do Neguev, e que nos últimos nove meses vem quase todos os dias até este local, perto do kibutz Re’im, que de alegre palco de espetáculo de música trance se transformou num memorial impregnado de tristeza.
“Gosto especialmente de interpretar Drive the Last Spike, dos Genesis. É uma canção sobre a construção dos caminhos de ferro em Inglaterra no século XIX e os trabalhadores que chegavam cheios de entusiasmo, mas depois morriam nos muitos acidentes que iam acontecendo, explosões e isso. Acho que se adapta ao que se passou”, explica Lahav, que tenciona ficar ali a tocar à sombra de um eucalipto, sentado na cadeira articulada que trouxe de casa, a meia-hora de carro. Fecha os olhos e volta a tocar.
São muitas as fotografias espalhadas pela pequena mata, quase sempre acompanhadas de bandeiras de Israel, o azul e branco com a estrela de David. Há vasos com catos, flores vermelhas de plástico e também pequenas latas com velas. Cada família lembra aqui os seus mortos de forma única: há quem tenha trazido uma T-shirt que diz algo da personalidade do filho ou do irmão que foi morto, outros encontraram algures a mochila trazida para o festival de música eletrónica e fizeram dela um pequeno altar. Há fotografias de gente a sorrir, talvez tiradas quando estavam em férias, como Ben Menashe Mizrachi, que surge de T-shirt e boné brancos, mas também de gente fardada, como Yulia Waxer Daunov.
Em uniforme veem-se também em Re’im alguns militares que discretamente vigiam o local, apenas a cinco quilómetros de Gaza, onde continua a guerra iniciada como resposta ao terror lançado pelo Hamas no 7 de Outubro, que matou ao todo mais de 1200 israelitas, tendo mais de duas centenas sido sequestrados. Nestes nove meses contabilizam-se agora perto de 40 mil mortos no lado palestiniano.
Pela dimensão do massacre, pelo facto de se tratar de um festival cheio de jovens, muitos deles do chamado “campo da paz”, israelitas que tradicionalmente defendem uma solução de dois Estados, os acontecimentos no Nova, festival de trance, ganharam destaque entre o que aconteceu há nove meses (Tal como ficou emblemático o kibutz Nir Oz, perto daqui, em que um quarto dos habitantes foi morto ou sequestrado, e onde as casas continuam negras do fogo). As imagens dos jovens no festival, antes do ataque e durante, primeiro divertidos e depois já a pedir auxílio, mais os SMS enviados em desespero para a família, e os vídeos feitos pelo próprio Hamas permitiram até a realização de um documentário de 54 minutos que tem sido exibido mundo fora, com uma sessão em Lisboa, no Cinema São Jorge, em fevereiro.
Há dias, no HaYarkon Park, em Telavive, a comunidade trance, também conhecida como Tribe of Nova, realizou o primeiro festival desde aquele terrível dia e mais de 40 mil pessoas assistiram. Entre os participantes estava a ex-refém Mia Schem, que passou 55 dias no cativeiro em Gaza, até ser libertada em novembro, no âmbito do acordo patrocinado pelos Estados Unidos e o Qatar, que fez o Hamas entregar israelitas em troca da libertação de presos palestinianos em Israel. Schem, que impressionou depois da libertação pela tatuagem “vamos voltar a dançar”, apelou a que não sejam esquecidos os reféns, que serão ainda cerca de uma centena nas mãos do Hamas e de outros grupos palestinianos.
Aliás, quem visitar também, em Telavive, a praça frente ao Museu de Arte, agora “Praça dos Reféns”, notará alusões aos jovens do Nova levados para a Faixa de Gaza, como um piano a lembrar Alon Ohel, de 23 anos, e a desafiar quem passa a tocá-lo para mostrar que o pianista não é esquecido. E já houve um concerto com os seus músicos preferidos como forma de manter a esperança viva.
Com sede num edifício próximo, o Fórum das Famílias dos Reféns tem como tarefa exatamente pressionar para que a libertação dos cativos em Gaza continue entre as prioridades do Governo israelita a par do objetivo de destruir a estrutura de comando do Hamas.
O silêncio no sítio onde se realizou o Nova é agora quase total, tirando o ruído de um ou outro carro a chegar. Por isso se destaca tanto o saxofone de Lahav, que continua a espalhar belas melodias.
Alon Penzel, um militar israelita que falou com pessoal de socorro, médicos legistas e as equipas de voluntários ZAKA (que têm como missão mais delicada recuperar partes de um cadáver para assegurar o enterro judaico), e escreveu um livro sobre as atrocidades no 7 de Outubro, reúne-se agora em Re’im com um grupo de jornalistas europeus e americanos de visita a Israel para lhes falar do que apurou, e de como foram muitos os corpos queimados ou mutilados, ao ponto de haver dificuldade na identificação. Dá um exemplo que envolve o Nova: “Houve um pai que veio aqui com a filha deficiente de 16 anos. Ela não conseguia mover nenhuma parte do corpo, mas adorava festivais de música e esse pai muito dedicado levava-a de um festival para outro numa cadeira de rodas especial. A 7 de outubro desapareceram aqui. Depois de algum tempo, encontraram o corpo do pai e a cadeira de rodas, mas não conseguiram descobrir a menina e não sabiam se teria sido sequestrada. Depois de muita investigação, abriu-se o túmulo do pai e descobriu-se que alguns ossos eram dela, tudo carbonizado.”
Depois do êxito da edição em hebraico, o livro de Penzel saiu em versão inglesa, com o título Testimonies Without Bondaries.
Das autópsias e também das imagens, muitas delas feitas pelo próprio Hamas, acumulam-se em Israel as certezas de abusos sexuais generalizados no 7 de Outubro. E Ayelet Razin Bet Or, do Project Dina, numa conversa em Telavive, assegura que “houve cortes e incisões nas zonas genitais, tanto em mulheres como em homens assassinados, nomeadamente no Nova Festival, e que o sangue nas calças de algumas reféns filmadas a serem levadas indicia violações”.
Uma das dúvidas iniciais sobre o ataque ao Nova tinha que ver com o conhecimento prévio do festival pelo Hamas, que teria assim identificado além dos kibutz da região um outro alvo, com umas 4000 pessoas.
Fontes militares citadas pelos jornais israelitas admitem ter sido fortuita a ação do Hamas aqui. Ehud Yaari, analista político do Canal 12, defende, durante um almoço na aldeia árabe israelita de Abu Gosh, uma tese mais geral sobre aquilo que o Hamas e o seu líder em Gaza, Yahya Sinwar, pretendiam em termos de abrir várias frentes, do Líbano à Cisjordânia, que também vai no sentido de o Nova ter surgido como uma oportunidade, não algo planeado.
“O plano de Sinwar era muito mais ambicioso do que a maioria das pessoas acredita, mesmo em Israel. A sua intenção era ter um comboio de Toyotas de caixa aberta, aquilo a que chamo de camelos dos tempos modernos, carregados de combatentes do Hamas, acompanhados por motos, a percorrer a distância de 40 quilómetros de Gaza à cidade de Hebron, tudo a pensar em incendiar a Cisjordânia. Conseguem imaginar? Se um comboio de carros do Hamas entrasse em Hebron, todos os palestinianos agarrariam nas armas que têm debaixo do colchão e seria uma grande festa... Não aconteceu porque caíram no festival de música, o Nova. E com tantas raparigas bonitas, tantos reféns, tanta gente para matar e violar, etc., já não conseguiram chegar a Hebron”, diz o especialista em geopolítica do Médio Oriente, um jornalista veterano que tem no seu currículo entrevistas com o palestiniano Yasser Arafat, o líbio Muammar Khadafi, o egípcio Hosni Mubarak ou o rei Hussein da Jordânia e, igualmente, com todos os primeiros-ministros israelitas dos últimos 50 anos.
Uma das imagens do Nova que se tornaram virais de imediato nas redes sociais foi o rapto de Noa Argamani, que pede para não a matarem quando é levada numa moto. Imagens do próprio Hamas. A jovem israelita foi libertada há um mês, numa das raras operações de resgate de reféns em Gaza bem-sucedida por parte dos militares israelitas. Com ela foram também resgatados outros três participantes no festival de música trance. Segundo os jornais israelitas, um deles disse ter chegado a estar detido no mesmo local com Guy Gilboa Dalal. Palavras de renovada esperança para a família, incluindo o irmão mais velho, Gal, que estava também no Nova Music Festival, mas conseguiu escapar.
O DN viajou a convite da Europe Israel Press Association