Monetizar a verdade para capitalizar a democracia
Há uma área da imprensa que está a resistir melhor à crise do que outras: o jornalismo económico. Jornais como o The Economist, o Financial Times e o Wall Street Journal estão a conquistar novos mercados e a inovar na distribuição da informação. Entraram no lucrativo negócio de esboçar cenários económicos, criando edições personalizadas para universidades de economia de todo o mundo, como a edição asiática do Financial Times, e desenvolvendo bases de dados úteis para investidores internacionais, como a Intelligence Unit, do Economist. Os empresários e os investidores precisam de informações fiáveis para decidir onde afetar recursos. A verdade, os factos, valem dinheiro.
Tem sido assim desde os primórdios da imprensa escrita. No seu clássico Mudança Estrutural da Esfera Pública, o filósofo alemão Jürgen Habermas mostra como o jornalismo se autonomizou durante o renascimento comercial, na transição entre a Idade Média e a Moderna. A imprensa deixou de ser um mero meio de divulgação das façanhas dos monarcas e passou a ter valor comercial, fornecendo informações relevantes sobre preços e mercados em diferentes pontos da rota mediterrânica. A “verdade factual”, que, para citar outra filósofa alemã, Hannah Arendt, “ocorreu no passado e foi documentada ou testemunhada por muitas pessoas”, passou a ter valor de mercado.
Vivemos numa época em que não se vendem apenas verdades, mas também mentiras. A estridência das redes sociais e das aplicações de mensagens, que encerram as pessoas nas suas bolhas de fake news, gera mais dinheiro do que a verdade factual de Arendt. Está aí um dos maiores desafios da economia política atual: recuperar o valor da informação verdadeira dos internautas, traduzindo-o em rentabilidade para as redes sociais e outras big techs. O capitalismo está consolidado e, com o avanço da digitalização, é urgente transformar a verdade num bem inestimável da economia e da sociedade actuais.
Este é um desafio que exige o máximo de ciência e debate por parte de técnicos, engenheiros de dados, e até economistas e financeiros, para fornecer elementos técnicos e sólidos aos agentes públicos que decidem o rumo das nossas vidas. Uma iniciativa nesse sentido teve lugar em Madrid, nos primeiros dias de maio, o Foro Transformaciones, onde debateu-se democracia face a revolução digital.
A solução não virá por combustão espontânea, mais sim pela identificação do pecado original da desinformação. Já é sabido que desde os algoritmos à cultura de muitos internautas, a lógica da mentira e do ódio é extremamente rentável, porque prende os utilizadores por mais tempo na internet e gera mais movimento. As iniciativas já tomadas, desde os mecanismos de controlo das notícias pelos media, tradicionais ou em novo formato, até às tentativas pontuais e parciais de regulação oficial, são insuficientes ou ineficazes, por mais louváveis que sejam.
O momento histórico lembra um pouco o vivido há quase um século, quando uma crise financeira norte-americana se transformou na Grande Depressão mundial, causando desemprego e miséria, que ameaçaram a própria persistência do regime capitalista. Nomes importantes de diferentes perfis, regiões e épocas, como os economistas John Maynard Keynes, Kalecki e Schumpeter, além de estadistas como Roosevelt, depois Churchill e De Gaulle, entre outros, lideraram verdadeiras reformas estruturais, que conseguiram promover o desenvolvimento.
Para além dos desafios, o filósofo Jürgen Habermas ensinou que as democracias são fundadas no debate baseado na verdade factual. O desacordo é saudável e bem-vindo, desde que os argumentos sejam construídos com base em factos reais. Não existe um debate baseado em “notícias falsas”. É a isto que Habermas chama “argumentação pela razão”. Muito antes do advento das redes sociais e das aplicações de mensagens, o sociólogo alemão salientou que a verdade factual não é apenas algo que tem valor de mercado. É também, e acima de tudo, a base sobre a qual as democracias são construídas.
Se a tecnologia promove hoje a mais rápida e profunda transformação da história da humanidade, ainda mais com o advento da chamada inteligência artificial generativa, também as instituições, as regras e os poderes públicos têm de ser reconstruídos (não basta reformar). É inevitável ou natural que a lei e a ordem se atrasem em relação à inovação tecnológica, mas isso não significa que possam chegar demasiado tarde ou ser abandonadas. É tempo de regulamentar e, idealmente, de criar incentivos e estímulos para que a informação correcta e rigorosa se torne um negócio regular e rentável para quem a trata.
Por que razão se confia numa moeda que já não é lastreada em ouro? Por que razão os viticultores utilizam os rótulos de Denominação de Origem Controlada (DOC) não como despesa, mas como investimento? Por que razão os produtores de cigarros não foram à falência depois de a lei os obrigar a informar nos maços que fazem mal à saúde? Por que razão os fabricantes de automóveis equipam os carros com travões ABS e cintos de segurança e teriam de o fazer mesmo sem a lei porque os compradores os consideram indispensáveis? Não se trata apenas de punir e restringir, mas de sensibilizar e incentivar as empresas digitais a serem boas para a sociedade e boas para o capitalismo.
Em suma, temos de fazer mais e melhor, mesmo que não saibamos exatamente o quê. A democracia é e será a mesma, mas precisa de sentar-se em novas bases, de ser recapitalizada. É tempo de atribuir um preço à informação verdadeira.
Doutor em Economia e Professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP); Pesquisador e pós-Doutorando em Políticas Públicas no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas - ISCSP e vice-presidente do Fórum de Integração Brasil Europa - FIBE.