Evocar a Escravatura

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"Se consciência significa memória e antecipação, é porque consciência é sinónimo de escolha ", disse Henri Bergson, Filósofo e Diplomata francês e laureado com o Prémio Nobel da Literatura em 1927. Da consciência nascem avenidas de renovados pensamentos face às realidades documentadas do passado para prevenir os desafios em relação ao presente e ao futuro.

Evocar a Escravatura é uma escolha humanista e mais do que lembrar a tragédia, é também e como escreveu Henri Bergson e cito "consciência significa memória e antecipação".

Ter consciência de um passado repleto de barbaridades e atrocidades cometidas sobre pessoas, é também reforçar que esta legitima abordagem decorre da necessidade emergente de quebrar o silêncio institucional e não só, porque o silêncio é o desencontro com a verdade histórica e Portugal não pode continuar a fechar os olhos aos factos da História enquanto disciplina do saber e do conhecimento em relação ao Tráfico Negreiro. Abordar a tragédia da Escravatura é um imperativo de consciência colectiva e individual porque urge também antecipar o futuro e reflectir com exemplar seriedade esta temática que incomoda corredores do poder e não só. Se os factos históricos têm espaço escuros sustentados em dor, sofrimento e tortura de Seres Humanos designados e tratados como "mercadoria", o presente implica a sua abordagem sem tabus e sem protagonismos. Não se pode fazer desta questão do Comércio Transatlântico de Escravos, uma leve incursão sem as devidas consequências que se impoēm a um Estado Democrático de Direito aqui ou noutro lugar do Mundo. 

Fechar o olhar à Escravatura é ser cúmplice das práticas desumanas e não encarar o debate sobre este tristíssimo assunto como uma violação de Direitos Humanos e a prática de um crime contra a Humanidade e contra os Povos Africanos. Em 2018 concorri a um Projecto de Ideias público promovido pela Câmara Municipal de Lisboa que permitia a cada autor e habitantes da cidade de uma ideia a executar. Concorri com a proposta da criação do Museu da Escravatura em Lisboa.

Embora bastante votada, a minha proposta não teve aprovação camarária, mas o executivo camarário à época e as estruturas integrantes deste projecto autárquico, optaram por escolher a ideia de um "Memorial à Escravatura ", proposto pela Associação Djass. Concordo com a diversidade de ideais e ideias, mas em meu entender e assumo neste artigo de opinião que um Memorial não é suficiente, nem honra com a dignidade que se impõe, fazer justiça a cerca de 11 milhões de pessoas escravizadas. A autarquia devia convocar todos os representantes associativos, estudiosos, autores de projectos sobre a Escravatura e alargar a participação e ouvir as diferentes vozes e não excluir o diálogo com anteriores mentores e defensores de trazer para o domínio público uma questão sensivel,mas que é muito importante ser debatida .Recentemente divulgado pelo Jornal o Público , a autarquia lisboeta propõe-se fazer um acordo com a Associação referida e não é justo que isto aconteça porque a luta pelo debate e evocacão da Escravatura foi feita por muitas pessoas, onde me incluo sem nenhuma visão egocêntrica e demais associações. E existem provas dessa dedicação, mas também desilusão pela não concretização de uma licita estrutura museológica. A alegação de que não existe acervo é uma mentira institucional que dá jeito. Porque mexe na ferida e citando de novo o Filósofo francês Henri Bergson, " a vida é um caminho de sombras e luzes. O importante é que se saiba vitalizar as sombras e aproveitar a luz". De facto incorrer aos caminhos das sombras é dar nascimento à coragem de investigadores, autores e instituições falarem sobre Seres Humanos indefesos e à mercê de violadores de todo o gênero durante a prática da Escravatura. E criar um Museu da Escravatura na antiga colónia que foi Portugal, não constitui um retrocesso , antes um diálogo com o passado e legitimar o sonho em relação à angústia e impediosa forma que "nenhuma imaginação pode conceber o horror da viagem " citando o "Relatório sobre a Costa de África, elaborado pelo Capitão George Coliier, 1818-1919", referência inscrita no livro Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos da autoria de David Eltis e David Richardson, com prefácio de David Brion Davis e posfácio de David E.Blight.

Este obra com título original "Atlas of the Transatlantic Slave Trade "(Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos ), originalmente publicado por a Yale University Press em 2010, foi traduzido para português por Helder Guégués e editado pela Imprensa/Reitoria da Universidade de Lisboa em 2023. É uma viagem com 308 páginas incluindo o Glossário e retrata a narrativa inevitável e inegável da factualidade da História. 

A lista de Mapas e as múltiplas palavras que se cruzam com os seus capítulos que constroem a envolvente consulta obrigatória deste livro, traduz a vida e realidade de Seres Humanos "amontoados para conectar os movimentos -amarrados uns aos outros pelas pernas-nunca ficam livres enquanto tiverem vida, ou até o ferro ter corroído a carne até ao osso ", citando o" Relatório sobre a Costa de África ". A indignação que sempre me interpelou à reflexão sobre os rios das correntes de ferro sobre Pessoas destratadas de modo horrendo não pode assentar num mero Memorial e num acordo camarário apenas com uma Associação. A abordagem da Escravatura  merece envolvimentos diversos  multidisciplinares.

O livro com o título "Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos " é dedicado à Memória do Historiador americano  Philip DeArmond Curtin (1922-2009), resultante do estudo da História de África e da Diáspora Africana cujo trabalho como referido nesta importantíssima obra "inspirou a criação da base de dados das viagens esclavagistas em que este atlas se baseia ", citando esta referência de Philip DeArmond Curtin que publicou ""História Africana " em Boston em 1978 e uma outra publicação intitulada "História Africana dos primeiros Tempos à Independência," lançada em Londres em 1995.

Este Atlas cujo Prefácio é da autoria de David Brion David, refere o mesmo e cito que " o comércio transatlântico de escravos, que persistiu por 366 anos e teve como resultado a deportação forçada de 12,5 milhões de africanos para o Novo Mundo, é considerado um dos maiores crimes contra a humanidade da História. Ao contrário do Holocausto de cinco anos dos nazis na Segunda Guerra Mundial, não foi impulsionado pelo ódio e pelo desejo de exterminar um povo inteiro-embora um dos efeitos a longo prazo da escravidão fosse um desprezo generalizado e até um ódio racista por pessoas de ascendência africana", diz David Brion Davis realçando o ódio como meio de perpetuar a violação da condição humana das pessoas escravizadas.

Porém, o autor do Prefácio na sua análise identifica outras causas para este horror e diz que " o motivo primordial por detrás do desenraizamento, escravização e transporte forçado de longa distância de milhões de africanos subsarianos  era a ganância - o desejo de colonizadores europeus , incluindo espanhóis, portugueses, holandeses, britânicos, franceses, dinamarqueses, suecos , brasileiros e norte-americanos, de encontrar a mão-de-obra mais barata para a produção e exportação de metais preciosos, açúcar, rum, arroz. tabaco, algodão, café, índigo e outros bens de luxo", fim de citação.

Evocar a Escravatura é um desígnio e caminho para honrar os Ancestrais Africanos, dar visibilidade pública digna e de legível leitura ao que se viveu de modo inesquecível na Memória Colectiva de África e da Humanidade.

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