Portugal não é uma ilha
Cinquenta anos depois do 25 abril, marco de uma reabertura de Portugal ao mundo, baseada nos valores da dignidade humana e da solidariedade entre povos, vivemos um momento decisivo face a desafios globais. Somos hoje, de facto, confrontados com uma multiplicidade de conflitos, a uma escala que não víamos desde a 2.ª guerra mundial, com repetidas violações dos direitos humanos e dos povos e a criação de sentimentos de insegurança, que alimentam soluções populistas e individualistas, face à impotência ou desadequação do actual sistema multilateral.
E, no entanto, em pleno período de debate político pré-eleitoral, a situação internacional e a política externa do Estado português estão ausentes dos debates e dos posicionamentos dos responsáveis políticos (e dos jornalistas e comentadores). O fechamento nos desafios políticos internos é a armadilha dos horizontes limitados e sem referências – como se Portugal fosse uma ilha, indiferente e imune ao que se passa à volta, e sem capacidade de intervir e olhar mais além.
Sabemos que a política internacional não define votos, mas as campanhas eleitorais não podem ser só espaços de captação de votos – das intervenções públicas de responsáveis políticos dos partidos democráticos, em momentos como estes, temos o direito de esperar que sejam intervenções que suscitem o reforço de uma cidadania global. E que, nesse contexto, nos digam também que voz querem ser a nível internacional.
Em 2023, uma em cada seis pessoas esteve exposta a conflitos internacionais e o sistema de protecção dos direitos humanos esteve sob forte ameaça em diversas geografias, de acordo com o relatório revelado pela Human Rights Watch. Neste contexto, a Cooperação Portuguesa para o Desenvolvimento, também enquanto expressão prática dos valores que devem sustentar a política externa do Estado português, pode (e deve) assumir um papel crucial, na procura de respostas positivas e construtivas, para a promoção da paz duradoura, dos direitos humanos e de um desenvolvimento sustentável. O fortalecimento de bens públicos globais (como a educação ou a saúde), a promoção de direitos e o fortalecimento de Estados de Direito, devem ser prioridade da política de estado da Cooperação Portuguesa, nas suas relações multilaterais e sobretudo bilaterais, expressa na nova Estratégia da Cooperação Portuguesa 2030.
Perante a multiplicidade de ameaças à liberdade, à paz e à segurança humana, também o espaço da sociedade civil tem conhecido recuos significativos à escala global. Cerca de um terço da população mundial vive em países com regimes autoritários, sem direito à livre organização, livre expressão ou reunião. A pandemia serviu de pretexto para afunilar mais as estreitas margens de actuação, afunilamento que em muitos países ainda hoje se mantém. O reforço da colaboração entre organizações e redes das sociedades civis a nível local e global torna-se uma necessidade ainda maior e a Cooperação internacional para o Desenvolvimento um campo de acção privilegiado.
A Cooperação Portuguesa, com os instrumentos específicos de financiamento às ONGD, tem respeitado e alimentado um espaço de preservação da independência e o direito de iniciativa das organizações da sociedade civil. Sendo importante preservar este património, é também nossa convicção que a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) tem um papel central e insubstituível quando se trata de mobilizar recursos para combater as desigualdades, defender os direitos humanos e o Estado de Direito, onde eles são mais ameaçados. É, por isso, necessário manter o compromisso de aumento progressivo da APD até 2030.
O debate sobre a Cooperação para o Desenvolvimento, que aqui propomos que seja alargado à sociedade, deve passar também pela clarificação das relações que nela se estabelecem entre os múltiplos protagonistas em todas as geografias e pelas formas de garantir mudanças efectivas e durabilidade dos seus efeitos. A experiência vivida na Cooperação para o Desenvolvimento durante a pandemia tornou inadiável o debate sobre a chamada “localização da cooperação”, com os movimentos de retirada de técnicos e organizações europeus, deixando a nu muitas situações de total dependência do lado das organizações e instituições locais, privadas do poder e dos meios para garantirem a continuidade do seu trabalho.
O modelo de financiamento da Cooperação para o Desenvolvimento e das organizações que nela intervêm, bem como as relações de poder em que ela assenta, devem ser alvo de uma discussão transparente, por quem financia a Cooperação Portuguesa e quem nela intervém. Iniciámos essa discussão em Portugal num documento de posicionamento da ACEP, que é a base do manifesto que agora dirigimos aos candidatos às legislativas do próximo dia 10 de Março.
Porque Portugal não é uma ilha, imune e dominada pela indiferença face aos inúmeros desafios globais, é urgente mobilizar as capacidades colectivas de construir uma visão do mundo e do nosso papel, entre todos os que partilham valores fundadores do Portugal democrático, da dignidade humana e da solidariedade entre povos.
Presidente da Associação para a Cooperação Entre os Povos (ACEP)