Arte encarcerada
“Os progressos da ciência moderna são tão admiráveis
que chego a sentir-me pouco à vontade
quando vejo os meus colegas na Universidade
discutir códigos genéticos,
enquanto os historiadores de Arte
discutem o facto de Duchamp
ter enviado um urinol a uma exposição”
Ernst Gombrich, 1966
Não sou crítico, nem estudioso da Arte (assim mesmo, com A maiúsculo), nem coisa que se pareça. Vejo as artes chamadas plásticas inteiramente da perspetiva do consumidor-fruidor que sou e confesso que olho com olhos bastante conservadores a produção artística deste tempo, que começou já devagarinho a deixar de ser o meu.
Mas, feita esta ressalva, não posso deixar de ficar perplexo com o tratamento que o novo Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (CAM) dá à melhor arte moderna portuguesa (atenção, arte moderna, não estou a falar da arte contemporânea) que tem nos seus cofres.
Havia antigamente (meninos, eu vi...) nas casas burguesas um aposento menor, por vezes uma cave ou um sótão, onde dormia a criada, uma empregada doméstica permanente que ficava em casa dos patrões.
A impressão com que fiquei da minha visita ao CAM é a de um gigantesco salão de exposições com dois anexos também expositivos, e ainda um espaço subalterno numa cave profunda, onde estão guardadas as grandes obras da nossa modernidade.
Cárcere ou cofre? Quarto de criada ou esconderijo? Ao ignorante que sou, talvez mero fariseu, mas devedor à Gulbenkian de algumas das melhores experiências musicais da minha vida, não deixou de fazer espécie o tratamento carceral infligido ao melhor que o CAM tem.
Eu sei que os museus tendem a transformar-se em salas de exposições, com as reservas a servirem apenas para ilustrar e reforçar o discurso do curador da exposição do dia. Mas o vago e nebuloso tom dos discursos que pude ler destes curadores fez-me lembrar a frase de Nietzsche sobre aqueles que turvam de areias as suas águas para que elas pareçam profundas.
Que me desculpe a Gulbenkian, de que, enquanto consumidor cultural, preciso bem mais do que ela possa precisar de mim. Que os curadores, ao verem confirmada a minha profunda ignorância, poupem das suas farpas este fariseu que se passeia pelas exposições sem nada perceber, deste conservador impenitente, aliado com as forças retrógradas da Reação. Piedade, senhores, como Rigoletto pedia aos cortesãos. Pois ele pedia pela filha raptada e eu peço por toda a arte encarcerada.
Aditamento:
Tive da parte da Fundação Gulbenkian a gentileza deste esclarecimento, que publico por respeito à Fundação e ao direito ao contraditório:
As Reservas Visitáveis do CAM não estão encarceradas…
Tendo sido opção começar por apresentar as obras feitas depois de Abril de 1974 na “Linha de Maré”, entendeu-se fazer para a coleção moderna da Gulbenkian uma apresentação diferente.
Assim, as Reservas Visitáveis terão dois procedimentos - visitas guiadas semanais por inscrição e a exposição permanente a abrir em breve com a mostra permanente de obras referenciais…