A culpa e a luta
Era minha intenção escrever hoje uma crónica sobre o tema das reparações aos colonizados e escravizados, debate que faz falta à sociedade portuguesa. Ia escrever que, por muito que a nossa geração seja alheia ao tráfico de escravos e por muito que quem lutou contra o colonialismo estranhe ser chamado a estas cerimónias de expiação, não podemos negar que há uma continuidade histórica entre nós e o nosso passado, que se chama comunidade portuguesa. Para nos orgulharmos de Vasco da Gama, não podemos deixar de nos envergonhar do tráfico de escravos.
Os holocaustos e as crueldades das guerras partem da negação da humanidade do outro e ela não começa forçosamente na Shoha. A negação da humanidade do escravo (desde o Direito Romano ele é uma coisa, a que o proprietário pode fazer totalmente o que quiser) constitui a mais radical negação do humano, que tanto pode ser vivida num navio negreiro como num campo de exterminação nazi.
Confesso, porém, que os recentes incidentes no Porto, em que um grupo racista inominável andou a atacar imigrantes em suas casas, pela madrugada, me afetou mais do que os horrores do tráfico de escravos dos meus antepassados. Tenho este defeito de pensar que as lutas se travam aqui e agora e que é mais urgente combater o racismo que cresce entre nós, do que envergonhar-me das atrocidades que em nome de Portugal foram cometidas no passado.
Esse meu defeito leva-me a preocupar-me mais com o Massacre de Wiriamu do que com os massacres de Afonso de Albuquerque, com o que se passou no Porto há poucos dias do que com o que se passou na África durante três séculos. É talvez uma falta minha de sentido histórico, mas eu penso que é mais um defeito da minha formação marxista, que me faz compreender mais a luta e a resistência do que a culpa e a expiação.
Arjun Appadurai, autor de uma rigorosa análise crítica do processo de globalização e da sua relação com a violência contra as minorias, no seu livro Fear of Small Numbers (2006), disse em declaração a este jornal sobre a ideia das reparações, que “são as pessoas erradas a indemnizarem as pessoas erradas”. Quando vemos, em relação a esta matéria, a pronta reação do Brasil, independente desde 1822 e que só aboliu a escravatura em 1888, em contraste com a prudência das antigas colónias africanas, que lutaram de armas na mão pela sua independência, algo nos faz pensar.
Preocupa-me a substituição de uma visão dialética da História por uma visão maniqueísta de índios e cowboys, de culpados que devem fazer a sua expiação e vítimas que devem receber a sua compensação. Não negamos os crimes que os portugueses cometeram durante a sua História: mas continuamos a preferir os historiadores sérios e críticos aos pastores evangélicos das novas ideologias.
A ideologia da culpa e da expiação faz, aliás, o jogo da globalização neoliberal, ao substituir uma análise de classes, que nos deveria levar a preocupar-nos mais com o racismo no Brasil e em Portugal do que com um hipotético mecanismo de compensação aos brasileiros, cuja continuidade histórica arranca nos colonos brancos e não nos escravos negros, nem nos autóctones, que só hoje reivindicam o seu lugar na comunidade brasileira e lutam por ele. Uma análise de classes leva à luta e não à expiação, à assunção pelos oprimidos da conquista plena da sua emancipação e não a uma vergonha moral dos opressores que conduza a reparações dadas pelas pessoas erradas a outras pessoas erradas, como analisava Appadurai.
Continuo a sentir mais vergonha de Wiriamu do que de Afonso de Albuquerque, continuo mais preocupado com os incidentes do Porto do que com a culpa e a expiação em relação aos escravos brasileiros. Nós não negamos a História, mas a nossa obrigação é viver e agir no presente. A luta prevalece sobre a culpa.