Viagem à vida dos portugueses em Abril de 74
À porta da Porfírios Contraste, na Baixa de Lisboa, uma adolescente negoceia com a mãe a altura da mini-saia que está decidida a comprar. É 24 de Abril de 1974, ambas notam que está muita polícia na rua, mas, nesta tarde que estaria quente não fossem as nuvens baixas, o que as ocupa é uma saia de napa, tal e qual como as que se usam em Londres, capital mundial da moda jovem e da música pop, e os collants coloridos que realçam o contorno das pernas.
“No meu tempo não era assim”, comenta a mãe, doutrinada na escola de auto-apagamento e recato da Mocidade Portuguesa Feminina, frase que também usa quando o filho mais velho, de cabelo comprido à Beatle e calças à boca de sino, lamenta que se tenha de sair do país para conseguir ver o filme de que todos falam: O Último Tango em Paris, em que Marlon Brando e Maria Schneider “dançam” um pas de deux tão ousado como fatal.
Lisboa e Porto modernizavam-se, o mesmo é dizer que o país marchava a duas velocidades (ou mais): a dos dois grandes centros urbanos, mais abertos ao exterior (apesar da censura), e a dos meios rurais, onde tudo falta, até as primeiras letras.
Quem vê TV…
Nesta família imaginada, decalcada das nossas, convivem filhos com ânsia de modernidade e democracia e pais que prometeram duas velas dos seus tamanhos à Nossa Senhora de Fátima se Salazar recuperasse. Mas ficaram desobrigados dessa missão, já que o ditador morreu a 27 de julho de 1970, depois de 22 meses de agonia. Restam-lhes o consolo das semanais Conversas em Família, de Marcello Caetano, transmitidas em horário nobre pela RTP.
Inauguradas as emissões regulares em 1957 (um pouco a contragosto de Salazar, que terá perguntado primeiro a Franco se a geringonça televisiva em casa de cada um não era um incentivo à insubordinação), a televisão tornara-se o ai-jesus nas casas de quem podia comprar o aparelho (nem que fosse em prestações mais ou menos suaves).
Os outros, os que não tinham dinheiro para isso, reuniam-se nos cafés ou nas coletividades quando o programa o justificasse. E parece que justificava muitas vezes: Ele era concursos de misses Portugal e estrangeiras, séries como o Bonanza ou Os Walton ou concursos, em regra apresentados por Artur Agostinho ou Fialho Gouveia. Ao final da noite, a sessão encerrava com a locutora de continuidade a desejar “boa noite, até amanhã, se Deus quiser” e tocava o hino nacional.
Mas nada batia a popularidade do Festival RTP da Canção, evento anual que já levara à Eurovisão, embora sem grande sucesso externo, grandes vedetas nacionais como Simone de Oliveira, Madalena Iglésias ou António Calvário. Mas, nesse ano de 74, o festival RTP, que se realizou a 7 de março, no Teatro Maria Matos, em Lisboa, foi o jovem Paulo de Carvalho, com o tema E Depois do Adeus, que venceu a concorrência composta por Green Windows, Duo Ouro Negro, Verónica, José Cid, Artur Garcia, Fernanda Farri, Helena Isabel e Xico Jorge. Em Brighton, seria “atropelado” (como todos os outros) pelos Abba, mas, como sabemos, ganharia a posterioridade.
A criançada brincava aos festivais, a cantar estribilhos de autoria incerta como “Café com leite é bestial/O Fernando Tordo já ganhou o Festival/”, mas o supremo deleite era a série Pippi das Meias Altas, transmitida pela RTP, ainda a preto-e-branco e firme e hirta num monopólio que duraria mais 18 anos. Igualmente popular, a ponto de inspirar a produção de merchandising como cadernos, estojos e malas para a escola, era a Família Pituxa, que, diariamente, ao princípio do serão, mandava os meninos para a cama. A animação era do realizador de cinema de animação Artur Correia e a letra da jornalista Maria João Duarte.
Mas os serões televisivos tinham poucos atrativos para os jovens, que preferiam um dos muitos cinemas da capital, onde, nessa Primavera, a oferta era suficientemente diversificada para satisfazer todos os gostos. Às grandes salas da Avenida da Liberdade juntam-se outras, novinhas em folha (hoje desaparecidas) como o Apolo 70, Estúdio (dentro do Cinema Império, para um cinema mais alternativo), Satélite (com o mesmo objetivo, mas no Monumental) ou o Estúdio 444. Uma certa Lisboa deixa-se mesmo seduzir pelas sessões da meia-noite, em salas como o Berna, o Apolo70 ou o Politeama, mais económico e, também por isso, para um público mais popular.
Na noite de 24 de Abril, quem saísse para uma ida ao cinema tinha de escolher entre o muito romântico O Nosso Amor de Ontem (com Robert Redford, no auge da beleza a arrancar tantos suspiros às espectadoras lisboetas como à sua parceira na película, Barbra Streisand), A Golpada, vencedor de sete óscares (com Redford e Paul Newman); American Graffiti, de George Lucas, Almas a Nu (com Alain Delon e Simone Signoret), Corrida Selvagem, de Samuel Fuller, Harry, o Detetive em Ação (uma das aventuras de Dirty Harry protagonizadas por Clint Eastwood) e até Cerimónia Solene, de Nagima Oshima. Neste cartaz, não faltavam mesmo os filmes portugueses com Malteses, Burgueses e às vezes, comédia realizada e protagonizada pelo ator Artur Semedo, e A Pantera Negra, em que Eusébio da Silva Ferreira interpretava a sua própria história.
Nessa mesma noite, os amantes de ópera tinham à disposição, no Coliseu dos Recreios, uma Traviata de grande qualidade. Depois de três récitas em São Carlos, Joan Sutherland e Alfredo Krauss interpretavam, na sala da Rua das Portas de Santo Antão, a ópera de Verdi. Deveriam deixar Lisboa no dia seguinte, mas o encerramento do aeroporto por causa da revolução levá-los-ia a prolongar a estadia para além do desejado.
Craques do desporto
O futebol, já se sabe, era rei no coração do povo. Nesse Abril, apesar do tropeção em Alvalade contra o Benfica (3-5), na presença de Marcello Caetano, o Sporting preparava-se para sagrar-se campeão nacional. A sua “arma secreta” viera de Buenos Aires e chamava-se Héctor Yazalde. Nesses mesmo campeonato, o avançado argentino, também conhecido por Chirola (que andava nas bocas do mundo por causa do namoro com a atriz portuguesa Carmizé), marcou 46 golos e conquistou a Bola de Prata devida ao melhor marcador da época. Uma época algo curiosa, em que o Futebol Clube do Porto ficou em quarto lugar, ultrapassado pelo…Vitória de Setúbal, onde jogavam, entre outros, Otávio Machado e Jacinto João.
ARQUIVO DN
Mas este era um tempo em que o desporto, mesmo o de alta competição, estava, ao contrário do país, sujeito a menos regras. Uma das figuras do momento desse Sporting em vésperas de ser campeão nacional era o guarda-redes Vítor Damas. Com aura de galã, protagonizou uma campanha de publicidade do creme de barbear Palmolive e dava uma entrevista à revista Flama, em cuja fotografia aparecia a fumar, o que ninguém parecia estranhar entre os atletas dessa época. A sua única preocupação, revelava a jornalista Regina Louro, era: “Não vamos falar de política, pois não?”
Igualmente livre, neste caso de não usar capacete (o que lhe seria fatal uma década mais tarde), era o ciclista Joaquim Agostinho. Vencedor de três Voltas a Portugal, empolgaria os portugueses, nesse Abril de 74, ao classificar-se em segundo lugar na Volta a Espanha, a escassos 11 segundos do vencedor, o espanhol José Manuel Fuente.
O desporto, sobretudo em modalidades de equipa, era ainda um feudo masculino. A exceção a tal regra tinham sido as Marias do Benfica, que dominaram o voleibol feminino entre a década de 1950 e 1975, no que foram secundadas, à época da revolução, pelas basquetebolistas do CIF - Clube Internacional de Futebol.
Novos hábitos de consumo
Nos intervalos dos programas televisivos, os espectadores eram “bombardeados” com publicidade a artigos tão diversos como meias (”Com CD, quem ganha é você”) ou pudins instantâneos. Nessa época, não havia quem não conhecesse slogans (alguns politicamente incorretos para a sensibilidade de hoje) como: “Um preto de cabeleira loura ou um branco de carapinha não é natural” (Restaurador Olex) ou “Diga bom dia com Mokambo.” O mesmo acontecia na rádio, onde ficaram para a história os anúncios interpretados pelo grupo de comédia Os Parodiantes de Lisboa.
Para satisfazer essa onda crescente de novos hábitos de consumo surgem também novos espaços como os primeiros centros comerciais Apolo 70 (de 1972) ou Castil (no ano seguinte). Mas os supermercados são também uma novidade que cativa as famílias. No DN de 5 de Abril, anuncia-se a abertura do supermercado Expresso, em Algés: “Muitas dezenas de pessoas ali acorreram para a inauguração do novo supermercado, cujo edifício, arquitetonicamente belo e modernamente funcional, alberga, ainda as cozinhas, os armazéns e um café snack bar (este ainda em construção)”. No terreno, o repórter constata a admiração dos populares, que, ele, aliás, partilha: “Estão ali dez porcos inteirinhos - desabafou uma senhora, referindo-se à secção de charcutaria das mais amplas e melhor fornecidas que temos visto, verdadeiramente surpreendida com a variedade de produtos expostos (…) Basta dizer que a secção de aperitivos, por si só, engloba seis prateleiras com cerca de 4 metros de comprimento cada uma.”
A 16 de Abril, o mesmo DN dava conta da inauguração, na véspera, das máquinas de venda automática de bilhetes na estação ferroviária do Rossio, o que, de acordo com o repórter no local, não ofereceu dificuldades de maior aos senhores passageiros.
A mais expressiva mudança de hábitos no Portugal da chamada primavera marcelista acontece na moda e na auto-representação do indivíduo. Começámos esta “viagem” no tempo com as agruras de uma mãe ante as escolhas de guarda-roupa dos filhos. À Porfírios, que tinha revolucionado a maneira de vestir dos jovens urbanos desde que, em 1965, abrira lojas em Lisboa e Porto, juntar-se-iam gradualmente outras como a Tara ou, para um público mais exigente e mais endinheirado, A Maçã, de Ana Salazar, em Alvalade. Em viagens regulares à swinging London dos Beatles e de Mary Quant, a futura pioneira da moda portuguesa trazia peças que faziam as delícias dos rapazes e raparigas das Avenidas Novas. Em depoimento para o livro LX 70 - Lisboa, do sonho à realidade (de Joana Stichini Vilela, Nick Mrozowski e Pedro Fernandes), Ana Salazar conta: “A Maçã vendia coisas muitíssimo bem selecionadas, um estilo muito pessoal. E era um trabalho feito com amor. As pessoas chegavam lá e diziam, viemos só para ver, e saíam com dez peças (…). Mesmo em termos económicos foi um sucesso brutal.”
Em Alvalade, que a rede do metropolitano e a Cidade Universitária tinham posto no mapa de Lisboa, havia mais do que novas lojas. Havia novos cafés como o Luanda ou o Vá-Vá, ambos ainda existentes, um de cada lado das esquinas da Avenida de Roma com a dos Estados Unidos. O cantor Paulo de Carvalho, herói involuntário da revolução (como o próprio se define), era um dos habitués. Conta-o no livro de Sandra Nobre e Clara Azevedo, 50 Cravos Depois: “Ia à Suprema, ao Luanda, por ali abaixo, chegávamos ao Café Londres, onde havia bilhares. Aliás, a minha ida para o Vá-Vá, que se tornou quase a minha casa, tem mais a ver com os bilhares do que com o café. Por cima, vivia o Lauro António, parava lá muito, o pessoal do cinema, o António-Pedro Vasconcelos, o Fernando Lopes, e o Manuel Guimarães, pai do Dórdio [poeta, último marido de Natália Correia].”
A classe média urbana, sempre a fazer contas, aspira a comprar um carrinho, preferindo os que se anunciam como mais económicos (sobretudo depois do choque petrolífero do ano anterior) como o Toyota Corolla (“veio para ficar e ficou mesmo”, ouvia-se no anuncio na TV) ou a Renault 4 L. Em matéria de artigos para o lar, as grandes novidades eram as alcatifas, os papéis de parede estampados e as máquinas de tricotar. O país avançava, no entanto, em velocidades diferentes - já o vimos. O escritor brasileiro Antônio Torres escreve, sobre Portugal, no livro Os Homens de Pés Redondos, que ficaram assim, de pés deformados, depois de darem muitas voltas sobre si mesmos, sem chegar a lugar algum. E o poeta Alexandre O’Neill escreve: “Os domingos de Lisboa são domingos/Terríveis de passar - e eu que o diga!/De manhã vais à missa a S. Domingos/E à tarde apanhamos alguns pingos/De chuva ou coçamos a barriga./As palavras cruzadas, o cinema ou a apa,/E o dia fecha-se com um último arroto./Mais uma hora ou duas e a noite está/Passada, e agarrada a mim como uma lapa,/Tu levas-me prà cama, onde chego já morto.”
Em Abril de 1974, Portugal continua a ser também um país que recorre sem grandes pruridos ao trabalho infantil, às vezes com consequências fatais, como se lê nesta notícia publicada pelo DN a 20 de Abril: “Nas obras de um prédio da Avenida da República, em Matosinhos, caiu do 5.º andar o trolha Arménio Cardoso Marante, de 15 anos. Os Bombeiros Voluntários de Leixões conduziram-no ao Hospital de Santo António, onde estava morto quando lá chegou.” E é também um país de miséria veneranda e obrigada a quem lhe dá uma esmola, conforme o doutrinara o Estado Novo, como também se depreende desta outra notícia publicada também no DN, a 16 de Abril: “O Grupo Musical O Pobrezinho visitado pelo presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria dos Olivais.”
E, no entanto, a poucos quilómetros, nesta mesma cidade, Natália Correia animava as tertúlias do seu bar O Botequim (na Graça) e surgem novos grupos de teatro (como a Cornucópia,com Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, ou a Comuna, com João Mota e Carlos Paulo, entre outros). Na quinta-feira pardacenta, que foi 25 de Abril, a vida não mudou por decreto, mas ganhou uma nova espessura, que só a liberdade pode trazer. Nos jornais, já sem a vigilância diária da Comissão de Censura, surge um novo glossário, composto de palavras como eleições, plenários, saneamentos, comissões instaladoras, greves, sindicatos, comícios, assembleias, pluralismo, melhoria de salários, comissões de trabalhadores. E o povo toma-as como suas, como tomara as ruas a 25 de Abril.
Nos jornais surgem novas realidades, tão diversas das publicadas semanas antes. Onde antes só havia anúncios com fotografia nos obituários ou nos apelos “de casa dos seus pais desaparaceu”, surgiam agora, em tamanhos variados, conforme as possibilidades dos anunciantes, declarações de não participação nas atividades da Direção Geral de Segurança (como se passara a chamar a PIDE a partir de 1974). Alguns diziam-se mesmo possuidores de atestado passado pela Junta de Salvação Nacional, que demonstrava a sua inocência. Multiplicavam-se os desmentidos e também os assaltos a escritórios tidos por suspeitos, como o que aconteceu na Madragoa em maio: “Um escritório suspeito de atividades da PIDE assaltado por fuzileiros navais.” (DN, 23/05).
Os jornais vendiam-se então como pãezinhos quentes. Nota-o Alexandre O’Neill numa crónica para a Flama: “Vejo, com prazer, que o público se encontra muito mais virado para as notícias daqui do que para as notícias de fora (…) A uma imprensa libertada e, em muitos casos, saneada, os leitores vêm oferecendo uma crescente avidez. Daí que os jornais tenham aumentado substancialmente, como parece, as tiragens e as vendas. Há pessoas, até, que compram, todos os dias, três ou quatro jornais e, todas as semanas, duas ou três revistas.”
Mudavam-se os tempos, mudavam-se as vontades. Pouco mais de uma semana após a Revolução, lia-se no DN: “A abolição do traje de noite para as estreias do São Carlos, tantas vezes reclamada pelo público mais alertado e pela crítica, só agora é autorizada. Ontem à noite, para encerramento da temporada, o público pôde comodamente seguir do jantar ou do emprego para a ópera, sem mudar de vestuário.” Mas o jornalista mostrava-se benévolo para os espíritos mais conservadores: “Claro, quem não gostar da mudança, pode continuar…”