O diário que teve Eça como repórter no Suez, Ferro a entrevistar Hitler e Saramago como diretor-adjunto

O diário que teve Eça como repórter no Suez, Ferro a entrevistar Hitler e Saramago como diretor-adjunto

Fundado a 29 de dezembro de 1864, o DN celebra hoje 160 anos. O primeiro diretor foi Eduardo Coelho, que introduziu o jornalismo moderno em Portugal.Entre as primeiras páginas emblemáticas deste mais de século e meio a noticiar o país e o mundo estão o regicídio de 1908, o homem na Lua em 1969 e o 25 de Abril de 1974.
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"Suas majestades e altezas passam sem novidade em suas importantes saúdes”, pode ler-se no primeiro Diário de Notícias. Mas se naquele 29 de dezembro de 1864 nada de muito relevante se passou com a família real, a verdade é que o jornal, fazendo justiça ao título que lhe foi dado por Eduardo Coelho, o fundador, muitas notícias haveria de dar sobre a monarquia portuguesa, desde esse dia em que D. Luís recusou o trono de Espanha, passando pela coroação de D. Carlos, pelas visitas dos primos inglês (Eduardo VII) e alemão (Guilherme II), pelo regicídio e pelo próprio fim do regime. E com a implantação da República a 5 de outubro a ser naturalmente o título grande na primeira página. O DN até chegou a publicar desenhos de D. Carlos, que assinava Carlos de Bragança.

Portanto, este jornal que hoje está a ler, e que celebra 160 anos, nasceu em plena monarquia constitucional e assistiu ao triunfo do movimento republicano, testemunhou também a chegada da ditadura militar e depois do Estado Novo e, claro, cobriu a Revolução que trouxe a democracia: uma histórica segunda edição a noticiar que “eclodiu um movimento militar” com o objetivo de “substituição do atual regime”.

São muitas as primeiras páginas emblemáticas, não só da história do país (além das mudanças de regime) como do mundo: ainda na sua primeira redação no Bairro Alto, numa rua dos Calafates que hoje se chama rua do Diário de Notícias, foi noticiado o assassínio do arquiduque Francisco Fernando, também o do presidente Sidónio Pais, a primeira travessia aérea do Atlântico Sul por Gago Coutinho e Sacadura Cabral ou o início da Segunda Guerra Mundial; instalados, entretanto, os jornalistas no edifício-sede na Avenida da Liberdade, desenhado pelo arquiteto Porfírio Pardal Monteiro e vencedor do Prémio Valmor de 1940, noticiou-se a bomba atómica em Hiroxima, o Nobel de Egas Moniz, a morte de Kennedy, também a de Salazar, a primeira visita de um Papa a Portugal, a chegada do Homem à Lua, a entrada na CEE ou a abertura da Expo98; e nestes seus poucos anos nas Torres de Lisboa, o jornal teve já de reportar sobre a tomada de posse de António Guterres como secretário-geral das Nações Unidas, o impacto da Covid-19 ou a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Ilustrações impressionantes como a que preenche a primeira página com a morte da rainha Vitória, fotos únicas como as da primeira Volta a Portugal em bicicleta (organizada pelo DN, em 1927), de Eva Péron a conversar com Salazar e Carmona, de Isabel II a desembarcar no Cais das Colunas e de Eusébio a chorar no Mundial de 1966, desenhos humorísticos de Stuart de Carvalhais e Bordallo Pinheiro ou infografias a explicar o 11 de Setembro fazem parte da história do mais antigo jornal diário de expansão nacional. Como também fazem parte milhares e milhares de notícias, entrevistas, reportagens e análises. São quase 57 mil números. E esta edição de hoje, tecnologia à parte, foi fechada tal como há 160 anos se fechou a primeira, que trazia na primeira página um editorial que ainda hoje  é muito citado: O DN queria ser “compreensível a todas as inteligências”.

O êxito do jornal idealizado pela dupla Eduardo Coelho, primeiro diretor, e Tomás Quintino Antunes, dono da Tipografia Universal, foi imediato. O jornal, apregoado nas ruas pelos ardinas, trazia notícias (muitas), e era mais barato (muito) do que a concorrência, graças ao caderno de classificados, onde vinham os anúncios do “preciso emprego”, “arrendo casa” ou “procuro senhora para compromisso sério”.

O preço, aliás, não era um pormenor no plano de negócios dos fundadores. Dez réis equivaliam ao custo de um ovo! Por isso, o mesmo editorial que fala de “ser compreensível a todas as inteligências” diz que o DN quer “ser acessível a todas as bolsas”. Um êxito mensurável nas vendas crescentes, mas também no reconhecimento nacional e internacional. Quando em 1867 foi abolida a pena de morte, o grande romancista francês Vitor Hugo enviou a Eduardo Coelho para ser publicada no jornal a carta onde elogiava o pioneirismo português: “Está pois a pena de morte abolida nesse nobre Portugal, pequeno povo que tem uma grande história.” A França, cujo Petit Journal inspirou Eduardo Coelho, tem um papel curioso na história do DN, pois Augusto de Castro, outro diretor marcante (três vezes, num total de 35 anos), chegou a criar o Paris Notícias em 1921, no seu primeiro consulado.

Eduardo Coelho é um nome essencial do DN, e a cidade de Lisboa homenageou-o com o busto que está no jardim de São Pedro de Alcântara, inaugurado em 1904, quando o genro, Alfredo da Cunha, era o diretor. Mas há outras figuras incontornáveis, cuja história se cruza com a do jornal: Eça de Queiroz, que aqui publicou quatro reportagens sobre a inauguração do Canal do Suez e depois, em parceria com Ramalho Ortigão, o folhetim O Mistério da Estrada de Sintra; Wenceslau de Moraes, cônsul em Kobe e correspondente no Japão; Manuela de Azevedo, a primeira mulher jornalista, notável a escrever sobre artes mas também a fazer reportagem sobre a caça à baleia. E, claro, António Ferro, famoso pela entrevista a Hitler mas que também andou em reportagem pelos Estados Unidos e até chegou a ser recebido na Casa Branca, e José Saramago, diretor-adjunto que mais tarde foi Nobel da Literatura.

Ferro, que numa fase da vida dirigiu a propaganda salazarista, e Saramago, que anunciou à redação que queria pôr o DN “ao serviço do povo português, para a construção do socialismo”, são nomes longe de serem consensuais, cada um refletindo, contudo, uma época. Como a história do DN reflete ela própria as épocas que o país foi atravessando desde meados do século XIX, basta pensar que o jornal foi submetido durante décadas à censura prévia, mas que no início da ditadura, noticiando uma intentona falhada, foi suspenso uns dias e o diretor Eduardo Schwalbach substituído interinamente por um militar. Já em plena democracia, o jornal fez do pluralismo uma das bandeiras e é simbólico que figuras como Mário Soares e Adriano Moreira tivessem escrito análises no jornal até ao fim da vida, tal como Saramago, reconciliado com o DN após o Nobel, passou a publicar aqui como crónica os Cadernos de Lanzarote.

Já falámos da primeira Volta a Portugal, mas podiamos também falar da Árvore de Natal no cinema São Jorge ou das Construções na Areia, iniciativas do DN que marcaram gerações. Há hoje ruas e bairros do Diário de Notícias espalhadas pelo país, reflexo da notoriedade do jornal ou de alguma intervenção social. E ainda há dias, a RTP emitiu o Natal dos Hospitais, programa que vem dos primórdios da televisão pública mas que existe desde 1944, quando foi criado pelo DN e teve Vasco Santana e Mirita Casimiro como estrelas. Poderíamos ainda sublinhar como o jornal faz parte do imaginário português, surgindo repórteres ficcionais em inúmeros romances que tratam dos últimos 160 anos, a sua antiga livraria no Rossio (com inconfundíveis as letras góticas a dizer Diário de Notícias) aparece num filme do 007 e a saga de Maria Adelaide, filha do fundador, que se opôs à venda do jornal pelo marido, já originou livros e deu o argumento ao filme Ordem Moral, com Maria de Medeiros. Talvez um dia alguém até faça um filme sobre o dia em que as FP-25 de Abril assaltaram o edifício do DN na Avenida da Liberdade, de metralhadora em riste, e saíram com os 15 mil contos destinados aos salários.

De todos os suplementos do DN há um que inspira especial carinho, até porque do cardeal Tolentino de Mendonça a Tiago Rodrigues, diretor do Festival d’Avignon, muitos nomes hoje sonantes escreveram nele. Falo do DN Jovem, que na era antes dos blogues premiava os jovens talentosos na escrita com a publicação dos textos num jornal nacional. Os escritores José Eduardo Agualusa e José Luís Peixoto, ou o poeta Pedro Mexia, estão entre esses valores que foram descobertos por Manuel Dias, jornalista que era a alma do suplemento.

Recordo uma ministra contar entusiasmada que também já tinha publicado no nosso jornal! E de como todas as terças-feiras, “logo de manhãzinha”, ia comprar o DN para ver se o DN Jovem trazia o texto. “Era uma grande alegria quando saía”, sublinhou.

Os jornalistas do DN testemunham muitas vezes este apego emocional ao jornal, seja de alguém que confessa que comprou a primeira casa graças a um dos nossos pequenos anúncios, ou o pai que telefona a pedir a página onde foi noticiada a vitória do filho num dos concursos Construções na Areia, uma página com a fotografia de um miúdo que agora é um arquiteto de 50 anos a viver em Londres! E um dia, ainda no n.º 266 da Avenida da Liberdade, recebemos um embaixador de um país do ex-Pacto de Varsóvia que, emocionado, contou que quando estudava português na Universidade de Relações Internacionais em Moscovo, na União Soviética, lia sempre o DN, mas precisava de autorização especial.

São tantas e tantas a histórias de um jornal que nasceu no século XIX que é impossível contá-las todas. Terminamos, pois, com uma que tem muito que ver com a ideia do jornal, desde que nasceu, estar  ao serviço do leitor: em 1880, nos 300 anos da morte de Luís de Camões, o DN distribuiu 30 mil exemplares de Os Lusíadas  aos seus leitores, oferecendo também exemplares a mais de três mil escolas do reino, mais uma revolucionária iniciativa de Eduardo Coelho, o inventor do jornalismo moderno português.

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