1955-2024. Há um antes e um depois de Joana Marques Vidal
Há um antes e um depois de Joana Marques Vidal no funcionamento do Ministério Público. A primeira mulher a assumir o cargo de Procuradora-Geral da República liderou o Ministério Público quando este atingiu, pela primeira vez, as mais altas esferas do poder político, económico, financeiro e judicial. Foi nos seis anos do seu mandato único, não renovado – ao contrário do que era prática até então – que o ex- primeiro-ministro José Sócrates foi detido, com transmissão direta nas TV’s, no âmbito do complexo processo Operação Marquês, que ainda decorre. E foi também sob a sua liderança que os alicerces do sistema financeiro português tremeram com o inquérito ao Banco Espírito Santo, que haveria de culminar na multimilionária reestruturação do BES e na condenação a oito anos de prisão efetiva de Ricardo Salgado, aquele que era conhecido como o homem mais poderoso do país. Mas não só.
O próprio âmago do sistema judicial também não saiu ileso na liderança de Joana Marques Vidal, com a Operação Lex a envolver dois juízes desembargadores. Os políticos, desta vez no Governo de Passos Coelho, voltariam a ser visados com a operação Vistos Gold, com o ex-ministro da Administração Interna Miguel Macedo a ser alvo de uma acusação, tendo acabado por ser absolvido. E já no penúltimo governo PS, o Caso Tancos envolveu o ex-ministro da Defesa, Azeredo Lopes.
Talvez Joana Marques Vidal não fizesse ideia de que quando, em 12 de outubro de 2012 assumiu o cargo público mais relevante da sua vida aos 56 anos, acabaria por se tornar uma figura incómoda, em 2018, quando terminou o mandato . A Justiça começou a ser olhada pelo cidadão comum com um misto de alarme e gáudio por, “finalmente, estar a afrontar os poderosos”. Mas, ao mesmo tempo, com alguma inquietação pelos estragos e, então como agora, pelos demorados desfechos. Não foi reconduzida pelo ex-primeiro ministro António Costa, ao contrário do que sucedera com os seus antecessores, situação mal vista em vários setores, mas que a própria geriu com elevado distanciamento.
Defender a autonomia do Ministério Público foi sempre a bandeira da procuradora, que assumiu, desde logo, o objetivo de o “modernizar e reestruturar, com mais formação e rigor na ação”. Uma tarefa bem conseguida, segundo os seus pares. “Dignificou de forma exemplar a função”, disse Paulo Lona, secretário-geral do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, em reação à sua morte. O ex-PGR José Cunha Rodrigues considerou que “foi uma magistrada distinta, que exerceu o cargo com grande sucesso e prestigiou o Ministério Público”. E o ex-bastonário dos advogados Luís Menezes Leitão elogiou o seu “perfil de abertura” e a “grande facilidade de relacionamento com as pessoas com quem trabalhava”.
No seu último ato público enquanto PGR, numa palestra sobre o Futuro da Justiça, Joana Marques Vidal mostrou-se confiante na separação de poderes: "Podem ficar descansadíssimos. O nosso sistema constitucional garante a separação de poderes". "A constituição confere à nomeação do PGR uma dupla legitimidade de quem propõe - o governo - e de quem nomeia - o Presidente da República ". No entanto, Joana Marques Vidal era apologista da intervenção do parlamento no processo de nomeação. "Poderia haver, por exemplo, uma audição pública da pessoa indicada para que partilhasse as suas ideias para o cargo. Daria mais transparência sobre a conceção da pessoa", disse na ocasião. E alertou que, apesar de não prever riscos em Portugal, “temos de estar atentos, não podemos baixar os braços”, pois "a autonomia do Ministério Público face aos demais poderes do Estado é muito importante para a independência dos tribunais. Por vezes sinto que que quando se fala em autonomia do MP, há pouca reflexão sobre as consequências para o Estado de Direito da possibilidade dessa autonomia não existir", afirmou.
Ao longo do seu mandato também defendeu outras alterações, questionando, por exemplo, a existência da Polícia Judiciária Militar como órgão de polícia criminal autónomo, a propósito do caso de Tancos, que envolveu o roubo de armas de instalações militares, por militares.
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lembrou a "jurista ilustre com profundas preocupações sociais e funções de liderança", enquanto a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, manifestou "profundo respeito" pela perda de uma "magistrada notável". A procuradora faleceu esta terça-feira no Hospital de São João, no Porto, onde esteve semanas internada em coma.
Natural de Coimbra, onde nasceu em 1955, filha do juiz jubilado José Marques Vidal, Joana Marques Vidal foi também vogal do Conselho Superior do Ministério Público e diretora-adjunta do Centro de Estudos Judiciários. Foi a primeira presidente da Comissão de Proteção de Menores de Cascais e coordenou os Magistrados do MP do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, de 1994 a 2002.
Em 2022, no congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Marques Vidal defendeu a necessidade de a justiça aprender a comunicar com clareza e simplicidade, uma mudança pedida por muitos e que passou a estar na ordem do dia, sobretudo devido à recente 'Operação Influencer', que levou à queda do Governo de António Costa.
O corpo da antiga magistrada vai estar em câmara ardente nesta quarta-feira entre as 14:00 e as 22:00 na freguesia de Pedaçães, no concelho de Águeda. Já as cerimónias fúnebres vão decorrer em Aveiro, localidade onde será cremada.