Muitas mulheres acabam na prostituição por falta de recursos financeiros para pagar as contas mais elementares, como água, luz e gás. Foto: Miguel Pereira/Global Imagens
Muitas mulheres acabam na prostituição por falta de recursos financeiros para pagar as contas mais elementares, como água, luz e gás. Foto: Miguel Pereira/Global Imagens

Crise leva cada vez mais mulheres a dedicar-se à prostituição

O medo de perder a casa, a falta de emprego e filhos para sustentar são os principais motivos que levam mulheres a entrar na prostituição. As instituições que as apoiam relatam casos de quem vá à rua só para pagar contas. Há violência, proxenetismo e quem peça a legalização da atividade.
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Numa das zonas mais conhecidas de prostituição de rua, da cidade de Lisboa, Maria de Jesus, 66 anos, viu, e ainda vê,  muita coisa a acontecer. “O país está na miséria. É esta crise que está a levar as mulheres para a rua. Há pessoas que perdem a casa, porque o banco lhes tira, outras são despejadas pelos senhorios. Há casais que estão os dois no desemprego. As pessoas  vêem-se obrigadas a isto. E vai haver cada vez mais prostituição”, vaticina Maria de Jesus,  que deixou de se prostituir há cerca de cinco anos.


Há várias instituições, no terreno, a dar apoio a estas mulheres. É o caso da Obra Social das Irmãs Oblatas. Carla Fernandes, rosto da instituição, afiança: “Muitas das mulheres que estão na rua perderam o emprego. Não conseguem encontrar um trabalho formal e continuam na prostituição. Outras vão à rua para pagar a água, a luz e o gás. A crise trouxe mais mulheres para a rua”. E prossegue: “A crise fez com que viessem mais mulheres para a rua. Há mulheres que não exerciam há alguns anos e que tiveram de voltar. A acrescentar a tudo isto  temos uma crise gravíssima ao nível da habitação. Temos mulheres que nos dizem que há dias em que só trabalham para pagar o quarto. E que se não trabalharem não têm forma de pagar o quarto, para dormir”, garante Carla Fernandes. “A crise tem afetado de  forma crescente o número de mulheres que não encontram solução para sair deste círculo”.

Reportagem sobre Prostituição
Lisboa,26/01/2024 -Reportagem sobre Prostituição. Na imagem das irmãs OBLATAS , Carla Fernandes .(PAULO SPRANGER/ GLOBAL IMAGENS )
Paulo Spranger | Paulo Spranger/Global Imagens


Opinião partilhada por Conceição Mendes, da associação O Ninho. “As pessoas não têm meios de subsistência e, hoje em dia, existe também a falta de opção habitacional. Vê-se mulheres de todas as idades mas, em alturas de crise, surgem mulheres mais velhas, que não têm outras escolhas”, finaliza.


Desses tempos, Maria José, antiga prostituta, guarda memórias dolorosas. “A primeira vez foi horrível. Saí do quarto e quase vomitei as tripas. Foi muito doloroso. Chegava a ter convulsões de choro, tinha náuseas, vomitava, nunca me consegui adaptar”. Foi também a falta de dinheiro e a vontade de dar um futuro à filha que levaram esta antiga empregada de limpeza a dedicar-se à prostituição. “Comecei nesta vida quando a minha filha foi para a faculdade, já tinha perto de 50 anos. Só estive nesta vida enquanto a minha filha andou a estudar. Disse para mim mesma que, assim que ela acabasse o estágio, saía. E assim fiz”.

A pobreza era muita e atirou Maria de Jesus da sua casa para um quarto de pensão onde atendia os seus clientes. “Eu tinha a minha casa, trabalhava nas limpezas, mas o dinheiro não dava para as despesas todas. Foi quando fui viver para uma pensão”. Maria de Jesus revela que a filha nunca desconfiou qual era a verdadeira atividade da mãe. “Quando a minha filha ia visitar-me, à pensão, a dona da casa e a empregada, como gostavam muito de mim, emprestavam-me uma bata, para fazer de conta que eu trabalhava lá. A minha filha nunca soube e, ainda hoje, não sabe. Mas não me arrependo do que fiz. Além de lhe ter conseguido dar um futuro que eu não tive, tenho uma filha maravilhosa, que cuida de mim”.


As situações de insegurança, proxenetismo e tráfico de seres humanos para exploração sexual também estão à vista de quem anda neste meio. “Uma vez vi uma miúda nigeriana a chorar, ali sentada nuns degraus. O pai tinha falecido e ela não podia ir ao funeral porque lhe tinham tirado o passaporte”, conta Maria de Jesus. “Fui conversando com ela, a miúda foi-se abrindo. Então o que é que tinha acontecido: uma nigeriana mais velha tinha trazido um grupo de miúdas novas, da Nigéria, para este trabalho. Quando cá chegaram ficaram prisioneiras do grupo, tiraram-lhes os documentos”. Mas há mais: “Também soube do caso de uma rapariga do Leste que esteve fechada, durante um ano, num apartamento no Martim Moniz. Houve um dia que ela conseguiu escapar, foi para o aeroporto, pediu ajuda e conseguiram que ela fosse à embaixada aqui. Mas são muito poucas as que conseguem fazer isto”. 


Histórias de violência também existem. “Muitas eram violadas, amarradas, espancadas. A mim nunca me aconteceu nada de mal. Dentro de tudo isto até tive muita sorte”. E depois há os proxenetas, homens que se envolvem com prostitutas e, a troco de alegada proteção, lhes ficam com o dinheiro. “Cheguei a tirar uma das mãos de um ‘chulo’. Ela estava caída entre dois carros, ali na Mouraria, e ele estava a pisar-lhe a cabeça, para lhe tirar a mala. Comecei aos gritos, a dizer que chamava a polícia, e ele fugiu. Chamei o INEM, fui com ela para o hospital de S. José, mas depois também há coisas que não se compreendem: passadas três horas já estava com ele, no café, de mão dada, cheia de pensos”, recorda a antiga prostituta.


Maria de Jesus não revela os preços que cobrava. No entanto, o trauma não lhe sai da cabeça. “É difícil. Fazer amor, com alguém que gostamos, é muito bom. Sexo? Com um desconhecido? A pessoa sente-se violada, sabe? Perde a sua dignidade. Como é que querem legalizar uma coisa destas?”, questiona, chocada.



Legalizar para proteger


Ana Loureiro, 40 anos, prostituta desde os 24 é, ainda, dona de uma casa de acompanhantes em Évora. E é também a outra face da moeda: autora de uma petição pela legalização e regulamentação da prostituição. Já foi detida por lenocínio [conduta de, profissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar o exercício por outra pessoa de prostituição, crime que pode ser punido com pena de seis meses a cinco anos] mas garante que não tem medo. “Não faço mal a ninguém. Para mim lenocínio não é o que eu faço. Lenocínio é ter uma rapariga a trabalhar obrigada, que não o quer fazer. Ou obrigar uma rapariga a ir com um homem que ela não quer”.

Ana é autora da petição "Regulação da Prostituição em Portugal” que, entretanto, já subIu à Assembleia da República e se encontra em fase de iniciativa legislativa, podendo, no futuro, vir a ser discutida no parlamento e, quiçá, aprovada. Ou não. “O que me fez lutar pela legalização da prostituição foi o excesso de menores que tem entrado na atividade. Por isso, um dos pontos passa por interditar a prostituição a menores de 21 anos”, avança Ana Loureiro, que nos recebe no sofá de casa, por entre viagens entre Lisboa e Évora, onde gere o bordel de luxo.

Reportagem sobre Prostituição
Lisboa,26/01/2024 -Reportagem sobre Prostituição. Na imagem Ana Loureiro.(PAULO SPRANGER/ GLOBAL IMAGENS )
Paulo Spranger | Paulo Spranger/Global Imagens

Também Ana entrou na prostituição por necessidades financeiras. “Na altura, tinha-me separado do pai dos meus filhos, tive um cancro do colo do útero e fiquei desempregada. Vi-me desamparada”. E, hoje em dia, acredita que a crise está a agudizar o problema. “As mulheres procuram a prostituição em situações de pobreza extrema. A prostituição, de há dez anos para cá, teve um salto gigantesco”, revela. “Eu trabalho com pessoas que sei que estão nisto porque precisam mesmo. Precisam de dinheiro para comer, para dar de comer aos filhos. Mulheres que estão em risco de ficar sem casa. Aliás, foi o que me aconteceu. Na altura, a minha casa já estava em hasta pública, para venda.  Foi neste mundo que consegui reconstituir a minha vida e pagar as minhas dívidas”.


 As raparigas que trabalham com Ana Loureiro “cumprem um horário de trabalho. E, mesmo que não trabalhem num determinado dia, pago-lhes sempre um mínimo de 100 euros”. Quanto às acusações de lenocínio, Ana Loureiro reclama: “A única coisa de que me acusam é de ficar com metade do dinheiro que as raparigas fazem. Mas repare: a maior despesa, que é a da casa, é toda comigo. Sou eu que pago tudo: a casa, produtos de higiene e anúncios”. 


Ana Loureiro acredita que com a legalização e regulamentação os casos de menores na prostituição, mas também o tráfico de seres humanos para exploração sexual, poderiam ser eliminados. “Queremos que haja, por parte das autoridades, uma vistoria às casas, que devem ser inscritas nas juntas de freguesia. Com a legalização a polícia poderia entrar nas casas sem estar à espera de mandados, para verificar se há menores a trabalhar. Se há máfias a controlar as casas. Se há venda de droga dentro das casas”. E denuncia: “Hoje em dia, não há uma casa que não tenha pelo menos uma menina de 15 ou 16 anos a trabalhar. Isto acontece porque não há legislação, a prostituição não está regulamentada. Tem de haver leis e sou eu, que estou dentro deste meio, que o digo. Há casos de mulheres estrangeiras, ilegais, que conseguem a autorização de residência através de clientes que têm empresas e lhes dão contratos de trabalho. Ou seja, conseguem-no através de falsificação de documentos, e isso é crime”, insurge-se. “É preciso criar alicerces, leis, para evitar que as pessoas entrem na prostituição mas, também, para que aquelas que querem sair, sejam apoiadas”.

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