Prender os médicos é deixá-los fugir
Os resultados da 1.ª fase do Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior deram bons sinais no que diz respeito à procura dos jovens estudantes por formação em duas áreas estruturais para a sociedade e que precisam de mais quadros. Na Educação, foram ocupadas todas as vagas disponíveis nas 21 licenciaturas em Educação Básica, os cursos que formam os professores. É um bom sinal, desde que cheguem de facto às escolas, já que a classe docente carece de renovação urgente – mais de metade dos profissionais têm 50 anos ou mais e quantidade de professores que se reforma não para de aumentar.
Outra área fundamental, e que também registou um aumento da procura por parte dos futuros universitários, é a Medicina, tendo sido colocados 1661 alunos, o maior número de sempre. Embora esteja a perder protagonismo para as engenharias no que diz respeito às médias mais altas dos alunos (Engenharia Aeroespacial voltou a destacar-se nesse aspeto), ser médico continua a ser a ambição de milhares de jovens pelo país fora.
Seja por uma questão de vocação, por tradição familiar, por a profissão dar garantias de empregabilidade (a prestação de cuidados de saúde será sempre uma necessidade para o ser humano), ou por outra razão qualquer, a verdade é que as sucessivas más notícias que vêm do Setor da Saúde não parecem demover os alunos na hora de selecionar o Curso de Medicina. O excesso de horas extraordinárias que prejudica o bem-estar físico e psicológico de quem está na profissão; internos escalados para vários turnos nas Urgências para colmatar a falta de especialistas; os constrangimentos de toda a espécie que se vivem no SNS e que preenchem o ciclo noticioso; os baixos salários que auferem no início da carreira; o défice crónico de profissionais no serviço público que resulta também em escassez de médicos formadores que ensinem e assegurem a capacitação dos jovens clínicos em ambiente hospitalar – numa entrevista recente ao DN, Rita Ribeiro, presidente da Associação Nacional de Estudantes de Medicina, revelava a existência de casos de um tutor para 15 alunos –; há hoje um conjunto de razões e de alertas, bem públicos, que podem afastar os mais jovens da profissão se não forem encontradas soluções.
Mesmo assim, apesar desse perigo, após o anúncio de Luís Montenegro sobre a abertura de novos Cursos de Medicina nas Universidades de Évora e de Trás-os-Montes, voltou à praça pública uma ideia já defendida pelo PS, e que constou do último programa eleitoral, de instituir um período de ligação obrigatória dos médicos ao SNS após concluírem a especialização. O objetivo seria não só travar a fuga para o setor privado como também garantir que o Estado seria, de algum modo, compensado pelo investimento que foi feito na formação académica dos jovens médicos nas universidades e hospitais públicos do país. Outra hipótese ainda mais radical seria obrigar os médicos a pagarem para sair.
Desde logo, a ideia parece esquecer que os médicos, após o curso, têm por norma até seis anos de ligação garantida com o serviço público para poderem fazer o internato geral e o internato de especialidade no SNS (embora, neste último caso, esteja a subir a quantidade dos que escolhem ser indiferenciados, sem especialidade, podendo prestar serviço como tarefeiros, o que lhes rende mais dinheiro do que se estivessem nos quadros).
Depois, a ir em frente, a proposta abriria uma Caixa de Pandora: se os médicos ficam obrigados a compensar com tempo de serviço o Estado pela sua formação, porque não fazer o mesmo com os professores que vão para o privado, com os enfermeiros que emigram, com os formados em Direito que podiam ajudar o país a recuperar dos atrasos crónicos da Justiça?
A falta de médicos não se resolve com imposições que discriminem uns estudantes em relação a outros. Numa sociedade moderna e em evolução, a escolha dos jovens por um curso rege-se, cada vez mais, por critérios bastante pragmáticos: Que escolha me traz maior probabilidade de encontrar trabalho? Qual me oferece mais estabilidade financeira? Qual me pode assegurar mais qualidade de vida?
Se, nesse momento de escolha inicial, os alunos perceberem que a Medicina os pode impedir, após a formação, de darem o rumo que bem entenderem à sua vida profissional, quantos não irão tomar outra decisão que não uma que os deixe amarrados a compromissos futuros quando ainda nem sequer uma aula tiveram na faculdade?
O reforço das condições de trabalho é o único caminho viável para atrair mais médicos (e, já agora, reter os que já estão no SNS). Há que lhes pagar melhor. Há que os formar melhor. Há que lhes dar tempo e espaço para que adquiram as competências técnicas e práticas para atenderem e tratarem os utentes. Há que lhes garantir que têm hipótese de equilibrar vida pessoal e profissional sem atropelos constantes das escalas.
Se o caderno de encargos para o estudante de Medicina se tornar tão oneroso que os desvie desse caminho, ainda vamos dar por nós a perguntar aos engenheiros aeroespaciais se não serão capazes de desenrascar umas horas nas Urgências dos hospitais ou a dar umas consultas no centro de saúde local. Afinal, com médias tão altas para entrar na Universidade, talvez possam aprender rapidamente a estancar uma hemorragia, a tratar uma fratura exposta ou a diagnosticar um cancro de pele. Isso, claro, se já não tiverem emigrado.