“As ideias radicais já existiam em Portugal, era só uma questão de aparecer alguém que as mobilizasse”
Como surgiu a ideia do livro?
Resultou da minha tese de doutoramento, que veio muito da minha experiência, da minha leitura do caso português. Na altura, Portugal ainda não tinha a direita radical, ou pelo menos não tinha um partido assim, com sucesso eleitoral. A minha impressão era de que havia muito potencial para um partido dessa ideologia ter sucesso no país. Parecia-me que, à porta fechada, as pessoas acabavam por ter muitas das conversas dos apoiantes destes partidos noutros países. Por vezes, estava em contextos em que as pessoas se sentiam um bocadinho mais à vontade e acabavam por ter muito mais este tipo de retórica, que é aquilo que se costuma dizer entre aspas “conversa de café”, não é? No livro, tentei comprová-lo empiricamente. A minha teoria é de que as ideias já existiam, era só uma questão de alguém aparecer que as mobilizasse para o espaço político. Em certos ambientes em que as pessoas sentem que têm menos probabilidade de serem julgadas, sentiam-se muito mais à vontade em dizer este tipo de coisas. O que muda não é tanto as ideias das pessoas, é muito mais a sua perceção de até que ponto é aceitável expressar essas ideias em público.
O facto de o Chega ter eleito agora 50 deputados mostra que perderam essa vergonha que tinham?
Sim, há dois níveis em que é importante pensar nisto. Um é o nível do voto, que é um comportamento privado ,em que as pessoas podem até dizer coisas que se calhar não teriam coragem de dizer noutros contextos, de expressar com o seu voto. E outro é o contexto mais público, de o que é que as pessoas defendem numa conversa, em contextos mais públicos, de um modo geral, ou participam num protesto, por exemplo. Eu acho que o facto de tantas pessoas terem votado no Chega não é, por si só, sinal de que as pessoas perderam a vergonha, mas o efeito de tantas pessoas terem votado no Chega é que pode levar a essa perda de vergonha. Havendo tantas pessoas a votar no Chega é muito provável que pessoas que tinham estas ideias, mas não as expressavam publicamente, se apercebam de que estas ideias são muito mais populares do que antes pensavam. Novamente, se pensarmos que algumas pessoas tinham esse tipo de ideias, mas acabavam por não as expressar porque tinham medo de ser julgadas, tinham medo de perder relações sociais, etc., a partir do momento em que o Chega tem tantos deputados, sentir-se-ão muito mais legitimadas para o fazer.
Divide o livro em fases: da latência, à fase da ativação e à fase da revelação. O que vem aí agora?
Boa pergunta. O que eu tento fazer no livro é acompanhar as fases até ao momento em que o radical começa a ter muito sucesso eleitoral, que se pode pensar que é o momento em que Portugal está agora. O que vem a seguir, normalmente - pelo menos pensando no caso de outros países - é uma reação do restante sistema partidário. Nós sabemos, com base em estudos de outros países, que muitas vezes o que acontece quando a direita radical tem sucesso é que os restantes partidos movem-se para perto das ideias da direita radical, que sejam mais conservadores em questões como oporem-se ao multiculturalismo, por exemplo. Eu acho que isso é uma tendência muito comum, não é bem a normalização no sentido de as pessoas se sentirem mais à vontade em expressar esse tipo de ideias, mas é a apropriação dessas ideias, como uma forma de tentar esvaziar o êxito eleitoral da direita radical. Ainda que isso, tanto quando nós sabemos de outros estudos, acaba por não ter sucesso, mas é normalmente essa a reação. E eu acho que essa, sim, é a quarta fase depois das que eu descrevo no livro. Outra coisa que também costuma acontecer depois disto é haver mais polarização na sociedade. Há alguns estudos que mostram que quando a direita radical começa a ter sucesso, por um lado há uma desestimulação destas ideias por parte de pessoas da direita radical, por outro há um maior afastamento destas mesmas ideias por parte de pessoas que estão mais à esquerda, e o resultado destes dois movimentos é que acabamos com uma sociedade mais polarizada. Portanto, o que nós podemos esperar das próximas fases da sociedade é, por um lado, uma maior apropriação destes tipos de ideias por outros partidos e, por outro lado, uma maior polarização da sociedade.
Mais ou menos como aconteceu no Brasil. Bolsonaro perdeu a reeleição, mas o país continua extremamente polarizado.
Exato, exato. É porque a questão complicada com muitas destas dinâmicas é que nós sabemos como é que elas começam e sabemos o que é normalmente o processo através do qual uma coisa leva a outra, mas é muito mais difícil revertê-las, não é? No caso do Brasil, depois da vitória de Bolsonaro, o país ficou muito mais polarizado e uma coisa muito parecida aconteceu nos Estados Unidos. Tivemos a vitória de Trump, o país ficou muito mais polarizado e depois este perde as eleições, tal como aconteceu com Bolsonaro no Brasil. Mas a verdade é que não se volta para a situação anterior de menor polarização. É uma questão em aberto: como é que se pode reverter este processo de polarização que, no limite, pode ser bastante perigoso para esta sociedade?
Referiu antes que um destes movimentos pode ser o facto de a direita mais moderada ou mainstream, digamos, se apropriar um pouco destas ideias e se radicalizar de certa forma. Acha que este é um movimento perigoso para a democracia?
Sim. Eu tenho algum trabalho acerca disto, não está no livro, mas está num artigo em que basicamente tentamos ver até que ponto é perigoso para as normas democráticas, ou seja, a adesão a valores centrais da democracia; até que ponto é que é mais perigoso a direita radical fazer afirmações, neste caso, xenófobas, ou o centro direita fazer afirmações xenófobas. A conclusão deste estudo é que acaba por ser ainda mais perigoso quando o centro-direita faz este tipo de afirmações do que quando é a própria direita radical a fazê-las, porque o centro-direita tem mais apoiantes, é visto como mais legítimo. Por isso, quando embarca nesta retórica, acaba por levar a uma perceção ainda maior de que este tipo de retórica é mais aceitável. Por isso, sim, eu acho que é um movimento que põe questões importantes acerca da democracia, mas é importante também dizer que, apesar de ser um movimento comum no centro-direita como reação ao sucesso da direita radical, o estudo mais abrangente que eu conheço acerca dos efeitos práticos disso parece sugerir que isto não funciona, ou seja, não retira votos à direita radical e também não ganha votos para o centro-direita. Por isso, é puramente instrumental para tentar ganhar votos e isso acaba por não resultar.
Muito se discute sobre os limites da liberdade de expressão, o que pensa disso?
Uma questão é a questão mais normativa, que tem a ver com até que ponto é que é legítimo uma democracia impedir a expressão de um certo tipo de ideias que são consideradas contrárias a valores centrais da democracia? Outra questão é até que ponto é que proibir essa expressão resulta ou não? São questões diferentes. Ou seja, eu acho que a minha posição pessoal enquanto cidadão é que é perfeitamente legítimo proibir posições xenófobas, posições antidemocráticas, porque isso vai atentar contra a segurança e a liberdade de outro tipo de grupos. Acho que isto é perfeitamente compatível com as balizas daquilo que é o sistema democrático. Uma questão mais complicada é até que ponto é que isto funciona ou até que ponto é que dá mais força a esses grupos, precisamente por essa questão de que estávamos a falar - ou seja, depois eles terem maior possibilidade de se vitimizarem, etc. O que eu quero dizer é que, enquanto cidadão, eu estaria perfeitamente bem com o Estado proibir este tipo de ideias desde que isso funcionasse.
Sim, esta discussão está muito em alta na Alemanha, por exemplo, o que me leva à questão de Portugal. É recorrente o discurso de que o Tribunal Constitucional deveria ter chumbado o Chega. O que pensa sobre isso?
É uma questão complicada também. Há um académico, meu colega em Oxford, que se chama Giovanni Capoccia, que estuda muito esta ideia de como é que as democracias podem combater atores que são iliberais e antidemocráticos. Ele tem uma ideia que eu acho que é muito interessante e que ajuda um bocadinho a pensar esta questão. É a ideia de um paradoxo temporal: o momento em que se pode fazer alguma coisa para parar estes atores é no início. Ou seja, era o Tribunal Constitucional ter chumbado o Chega da primeira vez nas eleições. É um momento em que ainda há muito poucas provas de que estes atores são iliberais. E depois, o momento em que as provas se acumulam e já é mais fácil fazer o argumento de que estes atores representam uma ameaça ao funcionamento da democracia, é um momento em que elas já são demasiado grandes para as chumbar. E depois, há um momento em que, se calhar, há provas suficientes e ainda há a generalidade da oportunidade para chumbar, mas é muito difícil saber qual é. Eu concordo, novamente, se pensarmos de uma forma constitucionalista do que é que funciona e o que é que não funciona, eu acho que o momento para agir tem de ser no início. Por exemplo, se o Tribunal Constitucional tivesse chumbado este partido num momento em que ainda era pequeno, ainda tinha pouca implantação na sociedade e nas redes sociais, etc.... Eu acho que proibi-lo agora seria contraproducente, porque só aumentaria ainda mais a sua popularidade. Por isso, penso que, para que chumbar ou proibir partidos tenha algum efeito, tem de ser feito muito no início. Se já existem essas ideias, tem de haver uma reorganização do sistema político, por estar a aparecer um partido deste género, diferente, que de alguma forma consegue mobilizar-se para que as pessoas acabem por votar nele. Novamente, a partir do momento em que as pessoas já se associam, já têm essas ideias, simplesmente bloquear a expressão dessas ideias eleitoralmente não vai mudar as pessoas e parece-me que é o grande desafio.
É possível voltar ao período anterior ao da normalização?
Parece-me improvável que quando as pessoas já sabem que as suas ideias são mais populares do que antes pensavam, possam, de boa vontade, voltar a um momento em que tinham ideias que não expressavam, porque achavam erradamente que essas ideias eram impopulares. E a mesma coisa para o lado das elites partidárias, que subestimavam o potencial eleitoral deste tipo de ideologia e agora já sabem que podem ter êxito eleitoral. Combater este tipo de atores iliberais não se faz ao impor novamente o estigma político que costumava existir contra a direita radical. Acho que esse combate se faz através, efetivamente, de mudar as ideias das pessoas, que nós vemos que é um processo muito mais lento do que este processo de mudança de normas sociais. Porém, é a única forma de garantir que não só se combatem os comportamentos de direita radical, mas se combatem também as próprias ideias que estão na sua origem. Porque o que acontecia antes da entrada em cena destes partidos é que havia muitas pessoas que tinham estas ideias e simplesmente não as expressavam. E isso significa que há na sociedade um potencial muito grande para aparecer alguém que se apropria destas ideias e que depois tenha este sucesso eleitoral tão rápido. Novamente, isto relaciona-se um bocadinho com esta ideia das normas de que eu falo no livro, que é a ideia de que estes partidos acabam por mobilizar precisamente por dizerem algo como: “Olhe, nós estamos aqui a dizer o que não é dito e o que não querem que nós digamos”, etc. Por isso eu acho que eles acabam por pegar muito nisso como uma forma de mobilizar as pessoas. Idealmente, uma sociedade democrática resiliente está numa situação em que, efetivamente, as pessoas não têm estas ideias. E nessa situação não podem ser surpreen- didas por um partido que, de repente, em 4 ou 5 anos passa de 1% para 18%. Por isso, acho que é difícil reverter o processo. E a forma de combater passa, efetivamente, por mudar as ideias que estão na base do comportamento e não simplesmente bloquear a transmissão destas ideias. O apelo destes partidos é muito identitário e baseia-se muito em criar bodes expiatórios e explorar a sociedade em relação a minorias e alterações culturais, etc. Quebrar um bocadinho esta barreira entre o nós e o outro, mostrar que a maior parte das ansiedades que as pessoas têm em relação a minorias não têm fundamento, etc. Eu acho que essa é a forma de tentar combater este tipo de forças, mais do que propriamente deixar as pessoas terem as ideias e simplesmente não as deixar serem expressadas.
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