Pobreza e problemas de saúde mental nas crianças e famílias: as duas faces da mesma moeda
Em 2022 assistimos a um aumento da taxa de risco de pobreza em Portugal. De acordo com o INE, 17% da população do nosso país viveu com rendimentos líquidos inferiores a 591 euros, mais 0,6 pontos percentuais que em 2021. Todavia, foram 20,7% as crianças que viveram em situação de pobreza, mais 2,2 pontos percentuais que em 2021.
A pobreza é um fator de risco bem conhecido para problemas de saúde mental uma vez que restringe o acesso a recursos económicos, sociais e pessoais necessários a uma vida saudável. Esta restrição, por sua vez, afeta o comportamento e diversos processos psicológicos e cognitivos. Assim, pessoas com menores rendimentos são expostas, com maior frequência, a fatores de risco e a hábitos de vida pouco saudáveis. A exposição a eventos adversos na infância é um mecanismo pelo qual a pobreza e a privação de recursos prejudicam a saúde mental. A situação de pobreza está muitas vezes associada a outras condições de vulnerabilidade. Ser criança em situação de vulnerabilidade social é, por vezes, também não ter família; viver em famílias desestruturadas, estar exposta, desde tenra idade, à violência doméstica, ao tráfico ilícito ou à dependência das drogas, ser olhada, viver na insegurança permanente, possuir uma baixa autoestima e não ter razões e estímulos para alimentar sonhos de um futuro esperançoso. A exposição a estas experiências adversas durante a infância está fortemente associada ao desenvolvimento de problemas de saúde mental ao longo da vida, tais como perturbações psiquiátricas e abuso de álcool.
Para além de constituir uma violação dos direitos humanos fundamentais a não erradicação da pobreza entre a população infantil significa uma dupla tragédia. Para a criança, que vê prejudicado o seu desenvolvimento físico, intelectual, mental e moral a que tem direito e, consequentemente, o seu futuro ficará comprometido; e para sociedade, que ao não preservar e desenvolver, o seu capital humano está a transferir custos sociais para as gerações vindouras.
Assim, uma estratégia eficaz de combate à pobreza tem que considerar, obrigatoriamente, a promoção da saúde mental, da mesma forma que a saúde mental da população depende de uma diminuição das situações de precariedade, pobreza e exclusão, particularmente nas crianças e jovens.
Consideramos que existem prioridades estratégicas em políticas públicas com vista à promoção da saúde e bem-estar de crianças e jovens e à diminuição das situações de pobreza e exclusão e sua “geracionalidade”. A primeira, ancorada em políticas de promoção da natalidade e sociais, que aponte aos primeiros 1000 dias de vida de um bebé (9 meses de gestação e os 2 primeiros anos de vida extrauterina) e aos impactos negativos no seu desenvolvimento integral, resultantes da exposição a situações de stresse significativo; Também a revitalização do modelo de intervenção precoce na infância e do conjunto de intervenções educativas, sociais e de saúde, incluindo saúde mental, para responder, precocemente e de forma contingente, às primeiras necessidades de bebés, crianças e famílias. Outras estratégias seriam a generalização do acesso a contextos educativos de qualidade a bebés e crianças dos 0 aos 3 anos e investir em programas de formação e desenvolvimento profissional da classe docente, fortemente comprometidos com a redução das desigualdades e com a capacidade de responder às situações de maior vulnerabilidade. Por fim, melhorar a qualidade do acolhimento residencial e reforçar os mecanismos de prevenção da violência doméstica e de reparação e mitigação de situações traumáticas.
O reconhecimento de que os problemas de saúde mental, nas crianças e famílias, são simultaneamente causa e consequência de situações de vulnerabilidade social, motivou a Universidade de Coimbra a associar-se a um consórcio europeu para implementar em Portugal o Projeto Europeu “Lets Talk About Children”. Este projeto, que se iniciou em 2023, permitirá capacitar os agentes de proximidade com crianças e jovens, como professores, educadores, outros profissionais da educação, da saúde e da área social, para que possam adquirir novas competências para trabalhar com as famílias, reconhecendo precocemente as suas necessidades psicossociais. É necessário, cada vez mais, que diversos agentes da sociedade civil se unam no compromisso de prevenção e redução à exposição de fenómenos de pobreza e exclusão das crianças e jovens.