Falta de médicos agrava-se em algumas Urgências e há mais escusas de responsabilidade
Em 2022, o verão foi marcado pelo encerramento de vários Serviços de Urgência, sobretudo nas áreas da Ginecologia/Obstetrícia e Pediatria. O cenário voltou a repetir-se em 2023, mas, desta vez, também no verão, os médicos começaram a recusar fazer mais horas extraordinárias do que as 150 a que estão obrigados por lei. E isto agravou a situação, pois muitos dos médicos, sobretudo de Medicina Interna, queixavam-se de já ter cumprido naquela altura do ano mais de 400, 500 ou até 600 horas extra.
Os constrangimentos perduraram, a tutela não chegava a acordo com os sindicatos da classe sobre valorização salarial e de carreira e o diretor-executivo veio dizer mesmo que novembro poderia ser um dos piores meses da história do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Foi assim até ao final do ano, mas esperava-se que o início de 2024 fosse mais calmo nas Urgências. E em algumas tem sido, mas noutras os problemas mantém-se e a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, diz ao DN que “não foi preciso os médicos atingirem as 150 horas para os constrangimentos nas Urgências do SNS se fazerem sentir de Norte a Sul do país”, comentando ainda: “Este Executivo perdeu a oportunidade de ouro de compor o SNS”, preferindo deixar “um SNS depauperado de profissionais, sobretudo de médicos”.
Ao DN, a dirigente diz que o sindicato está a receber mais declarações de escusa de responsabilidade por parte de médicos. E, além dos constrangimentos já noticiados em Mirandela - devido “à falta de médicos de Cirurgia Geral, que foram desviados para Bragança, deixando aquela população a descoberto” - em Viseu/Lamego, onde “a falta de especialistas em Pediatria tem fechado a Urgência”, bem como no Barreiro e em Cascais, a médica fala em mais situações, como em Loures e em Leiria, de onde continuam a chegar “escusas de responsabilidade médico-legal pelas condições em que estão a trabalhar”.
Mas não só. No Norte, sublinha Joana Bordalo e Sá, há também “uma situação gravíssima no Hospital Universitário de Santo António, no Porto. Segundo nos foi relatado, a Urgência está dividida, mas aquela que está de porta aberta ao exterior, a Urgência Geral para a área da Medicina Interna, está só entregue a médicos internos e a médicos prestadores de serviço, durante o período noturno. Não há um único médico especialista de Medicina Interna naquele espaço a ver doentes em conjunto com os outros médicos”.
A médica explica que a administração tem justificado com o facto de ter “um médico de apoio às enfermarias, mas é preciso ver que este hospital tem centenas de camas e se um médico está a ver doentes nas enfermarias não está a ver os doentes externos nas Urgências”, argumenta.
Para a presidente da Fnam, “a situação é grave porque se trata de um hospital universitário com uma das maiores Urgências do Porto. E o serviço estar entregue a médicos internos e a prestadores de serviço no período noturno coloca em causa os cuidados aos doentes”.
O DN confrontou a Direção-Executiva do SNS sobre a existência destes constrangimentos nos Serviços de Urgência referidos, procurando um comentário à situação e saber ainda como estavam estas a ser resolvidas no imediato e a resposta obtida foi: “Sobre as questões que nos coloca, ouvidos alguns conselhos de administração de hospitais mencionados, fomos informados de que as afirmações que refere não só não correspondem à verdade como, em alguns casos, já [foram] devidamente desmentidas junto de associações profissionais.”
Urgências de Loures e Leiria trabalham com "condições muito limitadas"
A Fnam reforça que as escusas de responsabilidade médico-legal que tem estado a receber são dos hospitais referidos e que, algumas começaram a chegar logo no início do ano, outras já em fevereiro. É o caso de Loures e de Leiria.
Em relação a Loures, Joana Bordalo e Sá confirma terem sido recebidas escusas de Medicina Interna em relação à Urgência Geral e também da Urgência de Pediatria. “Os colegas queixam-se de uma Urgência Geral enorme que, à noite, também fica sobretudo entregue a internos e a prestadores de serviço, tendo entre dois a um especialista durante o dia”, refere. “Às vezes, chegam a ter cerca de 200 doentes em que os que têm pulseira amarela podem ter de esperar nove horas e os que têm pulseira azul mais de 11 horas. O trabalho está limitado pela escassez de recursos humanos”, explica. “Já chegaram a ter cerca de 70 doentes à espera de uma vaga para internamento”.
No lado da Pediatria, os médicos queixam-se também da falta de condições “para garantir com segurança o exercício de cuidados segundo a legis artis. A questão é que não há médicos pediatras suficientes para assegurar a assistência ao bloco de partos, à Unidade de Cuidados Intensivos Neonatal e ao berçário. As equipas não cumprem os mínimos definidos pela Ordem dos Médicos”.
Como diz a dirigente, estes relatos são feitos em escusas de responsabilidade médico-legal entregues às administrações e depois enviadas aos sindicatos, pelo que ninguém pode dizer desconhecer o que se está a passar. Aliás, “há duas semanas utentes daquela região manifestaram-se em frente ao hospital contra a falta de médicos “.
A realidade não é nova e o mesmo acontece no Centro Hospitalar de Leiria que agora integra a Unidade Local de Saúde do Centro. A dirigente sindical da Fnam, a cirurgiã Sandra Hilário, contou ao DN que os pedidos de escusa começaram a chegar logo em janeiro e que agora em fevereiro chegaram mais, totalizando já a dúzia, mas “a situação pode vir a agravar, porque o ambiente que se vive no hospital é de desânimo, desalento e até de burnout”.
Joana Bordalo e Sá destaca que, neste momento, “o grande problema de Leiria está na Medicina Interna. Os médicos descartam-se de qualquer responsabilidade por estarem a fazer o trabalho em condições muito reduzidas. As Urgências estão a ser asseguradas por um ou dois especialistas e à custa de internos de medicina geral e familiar. Chegam a ter cerca de 100 doentes no período de dia ou da noite, que ficam durante 12 horas sem qualquer tipo de avaliação, porque quem está não consegue dar resposta”.
Por outro lado, lembra ainda que “Leiria tem Via Verde de AVC a funcionar, mas com muita deficiência, e quando há necessidade de transferir um doente para Coimbra é um médico de Medicina Interna que tem de o acompanhar, e a equipa ainda fica mais desfalcada”.
Sandra Hilário desabafa que trablha “há 25 anos no SNS” e que nunca viu “os profissionais tão desanimados, mesmo os internos, que se queixam de trabalhar muitas horas e de deixarem para trás o seu objetivo principal que é a formação”.
E confirma: “O problema na Medicina Interna tem-se vindo a intensificar com a saída de médicos e com a sobrecarga de trabalho para os que ficam”. Neste momento, explica, “há 31 internistas que têm de dividir o seu trabalho entre Leiria, Pombal e Alcobaça, embora esta última unidade não tenha Urgência Geral. E destes, só 20 fazem Urgência, os outros não, por questão de idade. Portanto, não chegam para assegurar as escalas de sete dias por semana, 24 horas durante 365 dias e servir uma população de 400 mil habitantes, o que é brutal”.
De acordo com a médica, e devido à falta de médicos, a Urgência Geral já teve de “encerrar a 12 e 18 de janeiro, na noite de 24 fevereiro e uma grande parte do dia do último sábado, 2 de março”. Neste momento também, há “várias baixas médicas, umas por gravidez, outras por burnout”. Em Leiria, os constrangimentos na urgência não afetam só a Medicina Interna, mas também a “Ginecologia/Obstetrícia, de onde, só no ano passado, saíram seis especialistas”, destaca.
Para Sandra Hilário, a situação que se vive em Leiria espelha o que se passa no SNS, "está a ser esvaziado de recursos", o que não é só "um problema de agora, mas também do futuro, porque não estamos a ter capacidade de formar com o mesmo rigor os jovens médicos”.
A presidente da Fnam destaca ainda as situações nos hospitais do Barreiro e de Cascais, concluindo: “Os factos são estes. Temos 1,7 milhões de utentes sem médico de família. Nos hospitais, Serviços de Urgência neste estado e atrasos em consultas e cirurgias”, mas “fica já um aviso para o novo Executivo é que a Fnam vai continuar de forma muito acérrima a lutar por melhores condições de trabalho e de salários para que haja, de facto, médicos no SNS.”