Em julho, Christopher Sperandio teve um pressentimento: tudo estava perdido e Donald Trump ia voltar a vencer as Presidenciais nos EUA. All is Lost, uma ideia inspirada naquele momento dos filmes em que o protagonista está no momento mais baixo - é precisamente o nome da exposição que o artista e professor na Rice University, em Houston, no Texas, inaugura este sábado na livraria Tinta nos Nervos, em Lisboa. Nas paredes deste espaço que funciona também como galeria podemos ver imagens de bandeiras americanas a arder, cartazes de Trump 2024 em chamas e uma série de desenhos a tinta preta e gamboge (um pigmento amarelo) em que não faltam lobos maliciosos, caveiras, sombras, explosões, polícias e muitos elefantes, o símbolo do Partido Republicano, que refletem um estado de ansiedade face ao aumento do autoritarismo, do extremismo e da violência..“Levei para aí uma semana a fazer o ‘luto’ depois de [o presidente Joe] Biden desistir da candidatura. Mas depois embarquei no comboio de Kamala. Angariei dinheiro para ela. Mas continuava a não me sentir bem”, confessa Sperandio rodeado pelo seu trabalho.Esta é a segunda vez que expõe na Tinta nos Nervos e vai explicando que começou a fazer desenhos para o seu Instagram, pinko_joe, durante a pandemia, “sempre digitalmente”, mas em julho passado “decidi começar a fazê-los com tinta e aguarelas”. .Foto: Gerardo Santos.Entrando em pormenores mais técnicos, Sperandio explica que a cor laranja que vemos nos desenhos originais expostos na parede, o tal gamboge... “quando passo os desenhos no scanner pode imediatamente ser alterada para outra cor ou outra textura, como se pode ver no livrinho” que acompanha a exposição. .Nesse livro também estão reproduzidos os balões de texto e legendas que acompanham os desenhos no Instagram. Um exemplo: a imagem de um enorme verme a sair da boca de um homem com ar de pânico enquanto exclama “és insuportável!” - uma referência ao ex-candidato presidencial Robert Kennedy Jr., agora apoiante de Trump e nomeado por este para secretário da Saúde e que, no passado, garantiu que um verme lhe comeu parte do cérebro....“Comecei a postar estes desenhos em julho, sentia-me péssimo e nervoso e era uma excelente distração ter este desafio técnico”, garante Sperandio. Todo vertido de preto, com uma boina da mesma cor a cobrir-lhe a cabeça, vira-se então para a outra parede onde se podem ver algumas paisagens e explica que na mesma altura começou a fazer estas pinturas. “São os panos de fundo de bandas desenhadas dos quais retirei as personagens e as falas. Mantive apenas as explosões, os incêndios, as inundações.” Mais uma vez, um esforço para tentar lidar com um crescente “sentimento de pavor”..Foto: Gerardo Santos.Mas este insistia em se impor a Sperandio e, em novembro, o artista começou a fazer as bandeiras a arder que se podem ver na outra parede da galeria. Estas são impressões gráficas que valeram ao artista algumas reações mais vivas e acusações de falta de patriotismo. Então porquê “queimar” a bandeira com as estrelas e as riscas que os americanos tanto amam e respeitam? “Sinto que a guerra civil está a chegar. Até agora tem sido uma guerra sem sangue, mas é uma guerra”, afirma Sperandio. E admite que “as pessoas ficam perturbadas. Postei algumas destas no Instagram e as pessoas ficaram perturbadas. Mas não são bandeiras de verdade, são desenhos da bandeira”..Foi nessa altura que alguém lhe perguntou: por que não queimar bandeiras de Trump? E o resultado está também exposto na Tinta nos Nervos..Aqui queremos saber se Sperandio acreditou mesmo que a vice-presidente Kamala Harris tinha hipóteses de vencer. Afinal, em julho, já imaginava que tudo estava perdido. “Não queria imaginar... Ainda não consigo acreditar”, confessa, antes de acrescentar: “Estou a tentar não entrar em teorias da conspiração acerca de Elon Musk. Se os republicanos podem acreditar que as eleições de 2020 foram roubadas, por que é que eu não posso pensar o mesmo das de 2024?”, pergunta num tom de provocação que já se tornou a sua imagem de marca..Mas admite que agora é tarde. A 20 de janeiro Donald Trump vai tomar posse como presidente. E Christopher Sperandio não resiste a brincar com a situação - a sua também, de um democrata a viver no Texas. “Já comprei um boné MAGA - Make America Great Again [o slogan de Trump] Tenho o vermelho e o preto e já o tenho no meu saco das emergências. Quando se vive numa zona de furacões, como Houston, tem de se ter um saco preparado com roupas, dinheiro e outros bens básicos, com armas.”.Não resisto a perguntar se Sperandio também tem armas. Ao que este responde com um sorriso irónico: “Sempre que compro uma ferramenta fico a pensar como me vou magoar com ela. Se compro um martelo imagino que me vai cair em cima do pé, se compro uma faca, imagino que me vou cortar. Portanto, uma arma... é melhor não ir por aí.” E os bonés? “Estão lá no saco, para o caso de ter de passar por alguma espécie de checkpoint”, brinca. Afinal a cidade de Houston até vota democrata, apesar de o Estado ser fortemente republicano..Foto: Gerardo Santos.Perante a perspetiva de mais quatro anos de Administração Trump, o artista admite que gostava que as suas obras fizessem mais diferença. “Continuo à espera de que um destes comics dispare. Até agora não aconteceu. Quatro anos e pouco efeito”, lamenta. Mas depressa volta ao sarcasmo: “Mas se me mandarem para a prisão, o valor dos meus desenhos vai subir significativamente. Afinal estão a falar em prender os seus inimigos.”.Apesar de tudo, Sperandio diz querer ter esperança no futuro. Mesmo se não esconde o receio com algumas escolhas de Trump para a sua equipa, mas sobretudo perante a perspetiva de as suas ameaças de realizar deportações em massa de imigrantes ilegais se concretizarem. “Ele está a posicionar em lugares de destaque pessoas que lhe devem lealdade. E nos militares... ele quer usar os militares em Chicago.”.Falámos muito de Trump, mas este não deixa de ter sido também um falhanço dos democratas e questionado sobre o que estes podem fazer para reconquistar a confiança dos americanos, Sperandio garante que “têm de transmiti melhor a sua mensagem”. “Hoje em dia 70% dos americanos veem a FOX News. Se calhar têm de pôr mais democratas na FOX”, acrescenta enquanto tira os óculos para limpar o olho direito. “Começou a 5 de novembro. Chamo-lhe o espasmo de Trump. Começo a falar de coisas perturbadoras e o meu olho começa a tremer”, explica meio a sério, meio a brincar. .Mas como é que um artista nascido na Virgínia em 1964, mas a viver e lecionar em Houston, onde fundou o Comic Art Teaching and Study Workshop em 2015, um espaço híbrido de ensino, pesquisa e produção de risografias, tem uma relação tão próxima com uma pequena livraria de Lisboa? “Tenho trabalhado com Pedro Moura, que é um dos fundadores da Tinta nos Nervos. Temos um projeto juntos, neste momento, em que estou a organizar uma conferência sobre banda desenhada em Houston e o Pedro está a editar o livro que vamos fazer.”.Um espaço para o desenho.Vanessa Alfaro, Ana Ruivo e Luís Azeredo, três dos fundadores da Tinta nos Nervos, junto à exposição de André Ruivo, irmão de Ana.Foto: Gerardo Santos.“O Pedro Moura, que é académico e tem os seus estudos na área da banda desenhada, já conhecia o Christopher dessas lides. E o Christopher, por seu lado, já conhecia Portugal, porque tinha feito uma residência artística em Cascais. De modos que um dia apareceu aqui”, conta Ana Ruivo, sentada na zona de cafetaria ao fundo da Tinta nos Nervos, lamentando que obras no prédio vizinho ainda mantivessem a esplanada situada no pequeno pátio fechada. Ana é outra dos fundadores da livraria - são seis ao todo, além de Ana e Pedro, Vanessa Alfaro, Luís Azeredo, Anabela Almeida e Frederico Duarte. Todos ligados ao mundo das artes, mas em várias vertentes, que em 2019 decidiram lançar-se neste projeto inédito de um espaço dedicado ao desenho, ilustração, BD e artes gráficas. .Logo nessa primeira visita, Sperandio deixou algumas obras na Tinta nos Nervos, mas a oportunidade da primeira exposição surgiria há pouco mais de um ano. “Foram momentos muito especiais, porque já era o pós-Trump, já estávamos em Biden, mas havia sempre este fantasma a pairar. E, a exposição já aflorava todos estes assuntos, não de uma forma tão explícita como agora. A relação correu muito bem, a receção foi muito boa, ele trouxe uma série de risografias, na altura era muito trabalho digital, que é também mais fácil de circular, portanto, acabámos por ter muitos trabalhos desses aqui e as pessoas aderiram muito”, recorda Ana Ruivo. .Agora foi o próprio Sperandio a contactá-los, em julho, para esta nova exposição. “Ele dizia como brincadeira, vou ser expulso e preciso de um sítio para ir. Ele tem sempre este lado meio irónico, mas ao mesmo tempo, angustiado, claro”, garante Ana Ruivo. .Ela própria ligada ao mundo das artes, tanto pelo pai, Henrique Ruivo, como pelo irmão André Ruivo, que protagoniza a outra exposição visível neste momento na Tinta nos Nervos intitulada Retratos: os originais e que consiste em dez “retratos” de personagens inventadas..Esta mostra está patente até 1 de fevereiro, enquanto All is Lost, de Christopher Sperandio, pode ser visitada até 25 de janeiro.