"Me fala o seu nome e o do jornal em que você diz que trabalha que eu vou perguntar para amigos que tenho em Portugal se você é quem diz ser e não um criminoso; entenda, na cidade todo o mundo está assustado, toda a precaução é pouca”, diz à reportagem do DN, por telefone, um amigo da família de Fatinha de Marcelo, eleita a 6 de outubro prefeita de João Dias, cidade de 2653 habitantes no interior do Rio Grande do Norte, a 372 km de Natal, capital estadual..Meia hora depois, feitas as averiguações necessárias, Fatinha de Marcelo, que só concorreu à eleição depois da morte a 27 de agosto do candidato Marcelo Oliveira, seu marido, atende o DN. “Tenho um misto de sentimentos”, afirma. “Por um lado, sinto tristeza pelas perdas que tive, por outro, sinto felicidade por conseguir chegar a uma vitória tão linda e nunca vista na história de João Dias, nunca ninguém havia ganho com maioria tão grande, e, por outro ainda, sinto medo...”..Fatinha de Marcelo, nome de guerra de Maria de Fátima Mesquita da Silva, agricultora de profissão, somou 1818 votos contra 566 de Damária Jácome, advogada, a segunda mais votada e outra personagem importante da história recente da cidade..Fatinha de Marcelo foi eleita prefeita de João Dias com 1818 votos..Fatinha foi nomeada candidata à prefeitura pelo seu partido, o União Brasil, na sequência da execução do marido, Marcelo, o prefeito que buscava a reeleição. Quando estava numa ação de campanha com apoiantes, ao lado do pai e mentor político, Sandir Oliveira, 58 anos, o autarca, de 38, foi atingido por 11 tiros de arma de fogo..Levado para um posto de saúde de Catolé da Rocha, cidade vizinha de 30 mil habitantes mas já no estado da Paraíba que vem sendo notícia pela disputa centenária entre duas famílias que resultou na morte de mais de 100 pessoas, acabaria por ter o óbito confirmado pela polícia às 13 horas daquela sangrenta terça-feira. Sandir, também atingido, faleceu logo no local da execução..Uma equipa da delegacia de Alexandria, localidade logo ali ao lado com 13 mil habitantes, foi enviada imediatamente ao local do crime. Dois dias depois, com a ajuda de outras equipas da polícia militar e da polícia civil, já haviam sido detidas 14 pessoas, quatro por envolvimento no assassinato e 10 por estarem a planear vingança..“Evitamos um derramamento de sangue”, disse à imprensa o delegado Alex Wagner, da divisão de polícia civil do oeste do estado, a propósito da prisão de um dos irmãos de Marcelo, de três polícias e de mais seis pessoas com 13 armas de fogo que se preparavam para fazer justiça com as próprias mãos..Sobre a autoria material do crime original, a polícia concluiu que oito executores chegaram ao local distribuídos em dois veículos, de onde, de repente, dispararam os tiros fatais. Os quatro detidos foram encontrados em fuga nos concelhos limítrofes, os demais estão a monte. Mortes na família .Marcelo foi eleito prefeito em 2020 numa lista que tinha a citada Damária Jácome como candidata a vice pelo partido Republicanos. Porém, ele demitiu-se seis meses depois, abrindo caminho à promoção da vice Damária, alegando em tribunal que havia sido coagido a renunciar ao cargo sob ameaças da família dela..Em 2022, a desembargadora Maria Zeneide Bezerra deu razão a Marcelo, sustentando na sua decisão que houve “coação moral irresistível consistente com ameaças de morte à sua pessoa e à sua família”, e o prefeito pôde voltar ao posto para o qual foi eleito, substituindo a substituta, isto é, Damária..Damária, quando era candidata a vice de Marcelo, esteve foragida da justiça..Damária, entretanto, perdeu em 2023 dois dos quatro irmãos, Deusamor, 38 anos, e Leidjan, 37, numa troca de tiros com a polícia em Barra, cidade da Bahia. Os outros dois irmãos dela estão na cadeia: Romeu, detido naquela operação, e Samuel, preso em Aracaju, capital do Sergipe, em 2021, numa operação espetacular com recurso a helicóptero. Samuel, que como os irmãos respondia à justiça por tráfico internacional de drogas (foi apanhado com 450 kg de maconha) e era procurado pela Interpol, ostentava uma vida de luxo. Sob efeito do álcool, resistiu à detenção mas agora está preso sob pesada vigilância, uma vez que, em 2013, ele e mais 11 prisioneiros fugiram do Centro de Detenção de Patu, no Rio Grande do Norte, usando uma hélice de ventoinha para derrubar a parede da cela..Laete Jácome, 67 anos, vereador de João Dias e pai de Samuel, Romeu, Deusamor, Leidjan e Damária, também foi detido dentro de casa por ter duas espingardas calibre 12 com 100 munições, dois rifles calibre 38 com 103 munições, e três pistolas calibre 380, com 80 munições, todas ilegais. E a própria Damária, quando era candidata a vice de Marcelo, esteve foragida da justiça depois de ter mandado de prisão decretado por posse de arma ilegal e envolvimento em milícia privada..O PCC.Segundo investigação do Ministério Público do Rio Grande do Norte, citada pelo jornal Metrópoles, a família Jácome sentia-se obrigada a tomar o lugar de Marcelo de forma a usar a prefeitura para lavar dinheiro para o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa do Brasil e da América do Sul: as autoridades potiguares (gentílico dos naturais do Rio Grande do Norte) descobriram até uma concessionária automóvel da família Jácome que movimentou seis milhões de reais (perto de um milhão de euros) mesmo tendo só um carro..O patriarca Laete dedicou-se por anos ao contrabando no estado mas ao deslocar-se com frequência a São Paulo para vender mercadoria expandiu conexões no submundo e envolveu-se com o PCC, organização interessada no controle da BR-116, estrada que passa ao largo de João Dias e é estratégica na rota do tráfico de cocaína para a Europa e para a África..Nessa mesma investigação, há um depoimento de Marcelo, a que o site Metrópoles teve acesso, a dizer que Deusamor e Leidjan é que “davam a última palavra” nas decisões da prefeitura, antes de serem mortos na Bahia..Nas redações de Natal os jornalistas contactados pelo DN dizem que em João Dias, cidade cujo salário médio da população é de 400 euros, toda a gente comenta à boca pequena que Damária, que se define nas redes sociais como advogada, mãe e serva do senhor, está por trás da morte de Marcelo e de Sandi. Mas, contactada pelo DN, a assessoria do Coronel Araújo, secretário de segurança do estado, não confirma a tese, por enquanto..“Seguem presos os 14 suspeitos detidos até ao momento, sendo quatro por participação direta nas mortes de pai e filho e os outros dez por formação de milícia privada. Todos continuam à disposição da Justiça”, afirma a secretaria de segurança. “E segue a fase de análise dos depoimentos, momento em que é preciso manter ainda mais o sigilo; as buscas pelos outros suspeitos continuam e as circunstâncias de como o duplo homicídio aconteceu e a motivação também seguem em apuração”, explicou por telefone o assessor de comunicação do Coronel Araújo..Damária, contactada pelo DN via redes sociais, e o partido Republicanos, contactado por email, não responderam a pedidos de entrevista até à conclusão desta reportagem..Fatinha de Marcelo, entretanto, garante que vai até ao fim: “Nunca pensei em fugir, apesar de me sentir ameaçada, o meu marido foi avisado que se ganhasse na urna perderia na bala, agora, o meu primeiro ato vai ser tentar conversar com a [governadora do Rio Grande do Norte] Fátima Bezerra e pedir segurança para a minha família, além de solicitar agilidade nas investigações sobre a morte do meu marido e do meu sogro e a prisão de todos os envolvidos”.