Líbano, o país que definha à medida que o Hezbollah cresce
Uma nova vaga de ataques aéreos atingiu alvos no sul do Líbano e nos subúrbios de Beirute, onde pelo menos três comandantes do Hezbollah foram mortos. Em resposta, o movimento xiita lançou mais de 300 foguetes para o norte de Israel e drones contra uma base naval a sul de Haifa. As Forças Armadas israelitas anunciaram que vão continuar as operações, e repetiram os avisos para que as populações se afastem de casas com armas, o que aprofundou o êxodo para o norte do Líbano. Esta situação de “quase guerra em todo o sentido”, como classificou o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, expôs também a frágil situação daquele país atraído para um vórtice de crises simultâneas - económica, financeira, política e institucional - perante a apatia das elites e a influência cada vez maior do movimento religioso, político e armado que é o “Partido de Deus” (Hezbollah).
A crise económica e financeira desvalorizou a moeda em cerca de 90% e atirou mais de 80% da população para a pobreza - o Banco Mundial, num relatório de 2021, disse que a crise do Líbano está possivelmente entre as três mais graves desde meados do século XIX. O país depende das remessas dos emigrantes, que correspondem a mais de metade do PIB.
“Estamos a assistir ao colapso de todas as instituições estatais que ainda se mantinham de pé”, disse em 2023 o analista Karim Bitar à AFP, perante a saída para a reforma do chefe dos serviços de informações sem que alguém o substituísse (acabou por acontecer meio ano depois). Um exemplo, entre outros, de um país minado pela corrupção e clientelismo de um sistema sectário que está sem presidente; tem um primeiro-ministro demissionário de um Governo em gestão; e o ex-governador do banco central está detido, acusado de vários crimes financeiros, não tendo sido nomeado um sucessor desde que saiu do cargo, há mais de um ano.
Esta paralisia impede que os serviços básicos sejam assegurados, abrindo espaço para o Hezbollah - financiado pelo Irão e por negócios não-oficiais, como o controlo de minas ilegais na América do Sul - se substituir no papel do Estado ao nível da Assistência Social, da Educação, da Saúde e até de serviços bancários.
Um estado dentro de um Estado cada vez mais enfraquecido, o Hezbollah tem uma presença limitada no Governo, de forma a “não ser responsabilizado pelo que o Governo faz ou deixa de fazer, e é capaz de tomar decisões independentes sobre guerra e paz, vida e morte, para todo o Líbano, sem consultar nem o povo, nem o Governo”, como disse Matthew Levitt, especialista do Washington Institute for Near East Policy, ao Wilson Center.
Advertência iraniana
Em Nova Iorque para participar na Assembleia-Geral da ONU, o presidente do Irão disse, em entrevista à CNN, que o Hezbollah “não pode enfrentar sozinho um país defendido, apoiado e abastecido pelos países europeus e pelos Estados Unidos”. O aviso de Massoud Pezeshkian completou-se com outra frase: “Não podemos permitir que o Líbano se transforme noutra Gaza às mãos de Israel.”
Também em Nova Iorque, o presidente dos EUA disse que é tempo de “concluir” o acordo de cessar-fogo em Gaza e mostrou-se contra uma “guerra em grande escala” no Líbano. “É sempre possível uma solução diplomática”, afirmou Joe Biden.
O primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu garantiu que as forças do seu país vão “continuar a atingir o Hezbollah”, quando o Ministério da Saúde libanês disse que a campanha de bombardeamentos fez 560 mortos.
Já o ministro da Defesa, Yoav Gallant, disse existirem “golpes adicionais já preparados” para o grupo xiita. “O Hezbollah de hoje não é o Hezbollah de há uma semana. A sequência de golpes que enfrentou no seu comando e controlo, os seus operacionais, as suas armas, tudo isto são golpes extremamente severos”, disse Gallant.
As forças armadas israelitas anunciaram a morte do comandante do Hezbollah Ibrahim Qubaisi ao lado de pelo menos outros dois comandantes no bombardeamento que atingiu Dahiyeh, o subúrbio de Beirute controlado pelo grupo pró-iraniano. Qubaisi, diz Telavive, era o homem encarregado dos mísseis e foguetes e foi o estratega de um rapto executado em 2000, do qual resultou a morte de três soldados israelitas.
Divisão de poderes
Ao deixar de ser um protetorado francês, em 1943, o Líbano adotou um pacto nacional sectário não-escrito que dividiu os principais cargos: o presidente é cristão maronita, o primeiro-ministro é muçulmano sunita e o presidente da Assembleia é muçulmano xiita.
Presidente
O Líbano está sem chefe de Estado desde outubro de 2022, quando o mandato de Michel Aoun expirou. Houve 12 sessões parlamentares para eleger um sucessor, sem sucesso. A situação não é inédita: Michel Sleiman foi eleito à 23.ª tentativa em 2008 e Aoun à 46.ª, ao fim de dois anos e meio.
Najib Mikati
Empresário com uma das maiores fortunas do país, tornou-se primeiro-ministro pela terceira vez em 2021, mas as Eleições Parlamentares do ano seguinte retiram a maioria ao Hezbollah e aos seus aliados, não conseguindo formar um novo Executivo. Ao deixar de exercer funções, Aoun decretou a demissão de Mikati, de 68 anos, que se mantém em funções de gestão.
Nabih Berri
Líder do Movimento Amal, e presidente do Parlamento libanês desde 1992, ano em que o Hezbollah elegeu deputados pela primeira vez, Berri construiu a imagem de mediador e diplomata. Aos 86 anos, porém, voltou às raízes ao anunciar ter militantes do seu movimento a lutar no sul, ao lado do Hezbollah.
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