Fabrica: Um festival para celebrar 30 anos de audácia
Mohammed El Hajoui tem 29 anos e evoca a tragédia palestiniana através de uma instalação que nos chama à intimidade de uma oração. Ardna (palavra árabe que designa “a nossa terra”) tem uma antiga capela como palco e no centro vemos uma oliveira assente sobre um minucioso tapete feito de argila vermelha e cinzas vegetais. O esforço de concentração que a sua composição exigiu, explica-nos Mohammed, foi, para ele, um exercício de meditação. A oliveira, de pé, como uma imagem religiosa num lugar de culto, simboliza, diz-nos, a secular resistência do povo palestiniano.
Mas “Ardna” foi apenas uma das muitas dezenas de obras apresentadas no Festival Fabrica, que decorreu em Treviso, Itália, no passado fim-de-semana, para assinalar os 30 anos do centro de investigação em artes e Design da Benetton. A ideia foi reunir centenas de artistas que têm passado pela Fabrica (os “fabricantes”) ao longo destas três décadas, oriundos da própria Itália, mas também de países tão diferentes como Brasil, Estados Unidos, África do Sul, Nova Zelândia, Uzbequistão, Japão, Coreia do Sul, México ou Portugal. As formas de expressão são, aliás, tão diversas como a Geografia, já que vão desde a música (em formatos vários; concertos, sets de DJ), cinema, conferências, workshops, performances e exposições. Para além disso, os visitantes tiveram ainda a oportunidade de visitar “Kinship”, a exposição que concluiu o semestre de residências primavera-verão deste ano de 2024. Tudo isto no incrível cenário de uma vila do século XVII restaurada e reinterpretada pelo arquiteto japonês Tadao Ando, a meia hora de caminho de Veneza.
Em declarações ao DN, o diretor artístico da Fabrica, o catalão Carlos Casas (também ele um antigo “fabricante”) sublinha a importância de comemorar três décadas de atividade do laboratório artístico concebido, nos anos 1990, por Luciano Benetton e Oliviero Toscani (o fotógrafo responsável pelas campanhas da marca nas décadas de 1980 e 1990, em que as referências à homossexualidade, aos doentes de SIDA ou à guerra dos Balcãs fizeram correr muita tinta): “Celebramos 30 anos e perto de 800 residências artísticas. É um acontecimento muito importante porque nos permite olhar para o passado e perspectivar o futuro. É um marco e é muito bom perceber o que os artistas nascidos da Fábrica têm conseguido fazer pelo mundo fora. Neste momento, podemos dizer que já contribuímos para o desenvolvimento de duas gerações de artistas, que agora se relacionam entre si, com diferenças, claro, mas também com lutas comuns como as causas da liberdade, direitos humanos e igualdade de género.”
Esta diversidade de origens e expressões é, para Casas, um sinal que as artes têm para enviar ao mundo: “Acreditamos, desde o princípio, que a arte e a criatividade são instrumentos para a paz e para um futuro melhor. Temos neste evento participações de 25 países, com músicos, pintores, fotógrafos, escritores, designers, performers. É uma celebração da multidisciplinaridade e do cruzamento de culturas.”
Cineasta e artista visual, Carlos Casas foi ele próprio, como já vimos, um “fabricante” na sua juventude. Uma experiência que define como essencial: “A Fabrica foi quem acreditou em mim quando eu era um jovem e mais ninguém o fazia. Nunca o esquecerei. E posso dizer que foi essa a razão que me fez aceitar a direção artística. Quero proteger as novas gerações e assegurar que tenham a mesma liberdade e possibilidades que eu tive há mais de 25 anos.”
Entre os “fabricantes” portugueses, estiveram neste Festival Sam Baron, Mariana Fernandes e Joana Astolfi, esta última a primeira portuguesa a trabalhar na Fábrica. Ao DN, a artista, especializada na intervenção em espaços (como a loja Hermès, no Chiado) conta como tudo aconteceu: “Soube que havia uns Fábrica Portfólio Days e fui lá com o meu próprio portfólio. Tinha 25 anos. Cheguei lá, sem ter nada marcado, mas creio que gostaram da minha coragem.” E aconteceu. Joana chegou a Treviso em pleno Inverno - o rigoroso Inverno do Norte de Itália - sem conhecer vivalma: “Treviso em Janeiro é o fim do mundo. Mas lançaram-me o desafio de criar uma nova imagem para as lojas da Sisley, que tinha, na época, um carácter muito forte e provocador.”
A solidão inicial deu lugar à efervescência produtiva: “Comecei-me a integrar nos departamentos todos, o que foi excelente para mim. Passadas duas semanas, entreguei o meu projeto ao Jaime Hayon, uma das pessoas que mais marcou a Fábrica e dirigiu o departamento com apenas 26 anos.” Outros projetos comuns surgiram. Ao longo dos dois anos em que esteve na Fábrica, Joana dirigiu ainda, em Bassano del Grappa, a maior exposição alguma vez realizada do escultor setecentista Antonio Canova (para quem não se lembra a sua obra mais conhecida é a escultura de Paulina Bonaparte, exposta na Galeria Borghese, em Roma). Hoje, a portuguesa não hesita em dizer que a Fábrica mudou a sua vida: “Esta casa exponenciou a minha capacidade de arriscar e de ver a beleza do erro. O meu trabalho sempre foi muito ligado à brincadeira e ao jogo e aqui mostraram-me que tudo isso está certo. Em Portugal, ainda temos muito medo.”
Enquanto conversamos, junto ao espelho de água criado por Tadao Ando, a festa de Verão continua. Como se houvesse paz no mundo. Carlos Casas formula um voto: “Quem me dera que este exemplo da Fabrica leve outras marcas (de moda, como a Benetton, ou de outras áreas) a apostar mais na inovação e na arte.”
O DN viajou para Treviso a convite da Benetton.