Com o cabelo louro preso em "banana" e vison comprido, Snu Abecassis não tem ainda 30 anos quando entra na sede da PIDE para prestar declarações. Dizem-lhe que publica livros subversivos, pouco propícios à santidade da família portuguesa e da integridade da pátria. Não se intimida. A escolha da indumentária, nessa manhã, servira para a tornar mais poderosa e distante aos olhos do agente que a interpela. É como se lhe dissesse: "A mim não podes tocar" e, no entanto, "só" falam das insubordinações contidas no catálogo das Publicações Dom Quixote..Para que se destacasse na vida pública portuguesa, à dinamarquesa Snu teria bastado a fundação da Dom Quixote em 1965, e o carácter de intervenção cívica que procurou imprimir-lhe desde a primeira hora. No entanto, seria como protagonista de uma paixão irresistível e transformadora, vivida com o líder do Partido Popular Democrata (PPD), mais tarde primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, que Portugal a conheceria (e se dividiria entre os que lhe reconheciam a coragem e os que a apontaram a dedo)."Um amor que se sobrepôs à razão de Estado", como lhe chamou Natália Correia numa entrevista concedida à RTP em 1990, no décimo aniversário da morte do casal, a bordo do fatídico Cessna ...Um amor que falou mais alto do que convenções sociais, condenações da Igreja Católica e conveniências políticas e a que só a morte de ambos ditou o fim..Mas quem era Snu, aliás Ebba Merete Seidenfaden, nascida em Copenhaga a 7 de outubro de 1940? Filha de jornalistas e, mais tarde, com uma forte ligação ao padrasto, Tor Bonnier, um dos editores mais importantes da Escandinávia, a jovem Ebba habituou-se, desde cedo, a chamar seu ao mundo dos livros, ao mesmo tempo que convivia, na casa da família, com artistas, escritores, filósofos e políticos. Albert Camus, ao saber-se vencedor do Nobel, foi jantar lá a casa. Muito jovem, no colégio interno inglês que ambos frequentavam, conhece um rapaz português, de nome Vasco. Casam-se muito novos, na Suécia, passam o primeiro ano da sua união em Nova Iorque e finalmente vêm para Portugal, mas a miséria e o analfabetismo do povo, à mistura com a Guerra Colonial, atingem-na como uma bofetada. Tem urgência de participar na mudança que se impõe..Com a cumplicidade do marido, funda, em 1965, as Publicações Dom Quixote, mas não se trata apenas de mais uma editora. Quer agitar as águas, mesmo sabendo que a censura e a PIDE não lhe largarão a porta, sobretudo depois de, em 1967, ter trazido ao nosso país o poeta soviético, Evgueni Evtuchenko. Na coleção "Cadernos Dom Quixote" publica pequenos volumes informativos sobre temas da atualidade internacional como A Revolta dos Negros Americanos, O Conflito Israelo-Árabe, mas também sobre a pílula e o feminismo. Na área infantojuvenil mostra uma predileção por heroínas insubordinadas como a Mafalda de Quino ou a Pippi das Meias Altas, que começará a publicar no nosso país..Aos três filhos - Mikaela, Ricardo e Rebecca - transmite a importância de uma sólida educação, da cultura e dos livros. A mais nova, Rebecca (tinha 9 anos à data da morte da mãe) partilha connosco imagens de um dos livros que a mãe lhe deu a ver, The Enchanted World - The Magic of Pictures, de Bryan Holme, uma extraordinária viagem pelo mundo da história da arte que a levou, desde muito cedo, a frequentar museus. "Os livros fizeram sempre parte da minha educação", conta ao DN. "Os meus pais sempre tiveram as estantes repletas de livros, o que despertou a minha curiosidade para ler. Penso que, como teve o privilégio de viajar muito desde muito nova, a minha mãe teve acesso a muitas culturas diferentes. Hoje, suponho que tinha como missão de vida a partilha das suas experiências intelectuais e não só através dos livros que publicava.".Esta sede de participação manteve-se no pós-25 de Abril. Espírito aberto às várias correntes ideológicas que compõem o espectro político, publica ensaios de Álvaro Cunhal, Mário Soares e Sá Carneiro. Reservada (a alguns parecerá fria), manterá algumas amizades constantes como Natália Correia e Helle Lima de Freitas (a mulher dinamarquesa do pintor). A primeira propiciará o encontro entre Snu e Francisco, que ocorrerá a 6 de janeiro de 1976 no restaurante lisboeta Varanda do Chanceler..O resto é a história de uma paixão absoluta entre pessoas que tinham deixado para trás a adolescência há muito. Snu divorcia-se de Vasco mas a mulher de Francisco, Isabel, não concede o divórcio, o que não os impede de iniciar uma vida a dois. Esta determinação, cheia de consequências sobretudo para a vida política dele, já inspirou livros vários, séries de televisão e o filme de Patrícia Sequeira, Snu (2019). Em 2007, o escritor e crítico literário Miguel Real publicou um romance a que deu o título de O Último Minuto na Vida de S. "Depois de escrever um livro sobre a condessa de Edla e o rei Dom Fernando II, que foram tão criticados pelos jornais da época e pela corte, dei por mim a pensar que essa paixão tinha um paralelo com a de Snu e Sá Carneiro", recorda agora. "Foi algo que deu muito brado na sociedade portuguesa de então. Lembro-me de falar com pessoas que eram votantes do PPD e que manifestavam o seu desagrado." Para o autor, a par da coragem do então primeiro-ministro, destaca-se o perfil dessa "mulher reservada e de grande dignidade", que, vinda do norte da Europa, "se apaixonou por um país arcaico, de costumes muito rígidos, e se propôs melhorá-lo até contra a vontade da sua própria família, que não compreendia a sua insistência em ficar aqui"..Uma imagem que coincide com a de outro escritor, Sérgio Figueira, que revisitou estes amores no romance O Fim do Tempo: "A ação situa-se em 1980, que é o ano de ascensão e tragédia de Sá Carneiro. O que me fascina é o facto de, sendo ele um homem politicamente situado à direita, conservador, pôr desta forma em causa os valores da Igreja Católica, de que ele era fiel, e da sua própria base social de apoio, o que era um risco considerável." E Snu, no meio de tudo isto? "Era uma mulher muito avançada para a época, sobretudo para o Portugal dessa época. Ela vem de uma alta burguesia escandinava, é uma mulher culta, de mentalidade liberal, que contrasta com o que eram as mulheres da mesma classe social no nosso país: boas donas de casa, educadoras dos filhos, quando muito decorativas. Não admira que Sá Carneiro se tivesse fascinado.".Tendo perdido a mãe em tão tenra idade, Rebecca Abecassis admite ter levado muito tempo a compreender a verdadeira dimensão da sua figura: "Só nos últimos 20 anos tomei verdadeiramente consciência da marca que deixou em Portugal, com os livros que publicou, e também com a coragem que teve em assumir a relação com Francisco Sá Carneiro."
Com o cabelo louro preso em "banana" e vison comprido, Snu Abecassis não tem ainda 30 anos quando entra na sede da PIDE para prestar declarações. Dizem-lhe que publica livros subversivos, pouco propícios à santidade da família portuguesa e da integridade da pátria. Não se intimida. A escolha da indumentária, nessa manhã, servira para a tornar mais poderosa e distante aos olhos do agente que a interpela. É como se lhe dissesse: "A mim não podes tocar" e, no entanto, "só" falam das insubordinações contidas no catálogo das Publicações Dom Quixote..Para que se destacasse na vida pública portuguesa, à dinamarquesa Snu teria bastado a fundação da Dom Quixote em 1965, e o carácter de intervenção cívica que procurou imprimir-lhe desde a primeira hora. No entanto, seria como protagonista de uma paixão irresistível e transformadora, vivida com o líder do Partido Popular Democrata (PPD), mais tarde primeiro-ministro, Francisco Sá Carneiro, que Portugal a conheceria (e se dividiria entre os que lhe reconheciam a coragem e os que a apontaram a dedo)."Um amor que se sobrepôs à razão de Estado", como lhe chamou Natália Correia numa entrevista concedida à RTP em 1990, no décimo aniversário da morte do casal, a bordo do fatídico Cessna ...Um amor que falou mais alto do que convenções sociais, condenações da Igreja Católica e conveniências políticas e a que só a morte de ambos ditou o fim..Mas quem era Snu, aliás Ebba Merete Seidenfaden, nascida em Copenhaga a 7 de outubro de 1940? Filha de jornalistas e, mais tarde, com uma forte ligação ao padrasto, Tor Bonnier, um dos editores mais importantes da Escandinávia, a jovem Ebba habituou-se, desde cedo, a chamar seu ao mundo dos livros, ao mesmo tempo que convivia, na casa da família, com artistas, escritores, filósofos e políticos. Albert Camus, ao saber-se vencedor do Nobel, foi jantar lá a casa. Muito jovem, no colégio interno inglês que ambos frequentavam, conhece um rapaz português, de nome Vasco. Casam-se muito novos, na Suécia, passam o primeiro ano da sua união em Nova Iorque e finalmente vêm para Portugal, mas a miséria e o analfabetismo do povo, à mistura com a Guerra Colonial, atingem-na como uma bofetada. Tem urgência de participar na mudança que se impõe..Com a cumplicidade do marido, funda, em 1965, as Publicações Dom Quixote, mas não se trata apenas de mais uma editora. Quer agitar as águas, mesmo sabendo que a censura e a PIDE não lhe largarão a porta, sobretudo depois de, em 1967, ter trazido ao nosso país o poeta soviético, Evgueni Evtuchenko. Na coleção "Cadernos Dom Quixote" publica pequenos volumes informativos sobre temas da atualidade internacional como A Revolta dos Negros Americanos, O Conflito Israelo-Árabe, mas também sobre a pílula e o feminismo. Na área infantojuvenil mostra uma predileção por heroínas insubordinadas como a Mafalda de Quino ou a Pippi das Meias Altas, que começará a publicar no nosso país..Aos três filhos - Mikaela, Ricardo e Rebecca - transmite a importância de uma sólida educação, da cultura e dos livros. A mais nova, Rebecca (tinha 9 anos à data da morte da mãe) partilha connosco imagens de um dos livros que a mãe lhe deu a ver, The Enchanted World - The Magic of Pictures, de Bryan Holme, uma extraordinária viagem pelo mundo da história da arte que a levou, desde muito cedo, a frequentar museus. "Os livros fizeram sempre parte da minha educação", conta ao DN. "Os meus pais sempre tiveram as estantes repletas de livros, o que despertou a minha curiosidade para ler. Penso que, como teve o privilégio de viajar muito desde muito nova, a minha mãe teve acesso a muitas culturas diferentes. Hoje, suponho que tinha como missão de vida a partilha das suas experiências intelectuais e não só através dos livros que publicava.".Esta sede de participação manteve-se no pós-25 de Abril. Espírito aberto às várias correntes ideológicas que compõem o espectro político, publica ensaios de Álvaro Cunhal, Mário Soares e Sá Carneiro. Reservada (a alguns parecerá fria), manterá algumas amizades constantes como Natália Correia e Helle Lima de Freitas (a mulher dinamarquesa do pintor). A primeira propiciará o encontro entre Snu e Francisco, que ocorrerá a 6 de janeiro de 1976 no restaurante lisboeta Varanda do Chanceler..O resto é a história de uma paixão absoluta entre pessoas que tinham deixado para trás a adolescência há muito. Snu divorcia-se de Vasco mas a mulher de Francisco, Isabel, não concede o divórcio, o que não os impede de iniciar uma vida a dois. Esta determinação, cheia de consequências sobretudo para a vida política dele, já inspirou livros vários, séries de televisão e o filme de Patrícia Sequeira, Snu (2019). Em 2007, o escritor e crítico literário Miguel Real publicou um romance a que deu o título de O Último Minuto na Vida de S. "Depois de escrever um livro sobre a condessa de Edla e o rei Dom Fernando II, que foram tão criticados pelos jornais da época e pela corte, dei por mim a pensar que essa paixão tinha um paralelo com a de Snu e Sá Carneiro", recorda agora. "Foi algo que deu muito brado na sociedade portuguesa de então. Lembro-me de falar com pessoas que eram votantes do PPD e que manifestavam o seu desagrado." Para o autor, a par da coragem do então primeiro-ministro, destaca-se o perfil dessa "mulher reservada e de grande dignidade", que, vinda do norte da Europa, "se apaixonou por um país arcaico, de costumes muito rígidos, e se propôs melhorá-lo até contra a vontade da sua própria família, que não compreendia a sua insistência em ficar aqui"..Uma imagem que coincide com a de outro escritor, Sérgio Figueira, que revisitou estes amores no romance O Fim do Tempo: "A ação situa-se em 1980, que é o ano de ascensão e tragédia de Sá Carneiro. O que me fascina é o facto de, sendo ele um homem politicamente situado à direita, conservador, pôr desta forma em causa os valores da Igreja Católica, de que ele era fiel, e da sua própria base social de apoio, o que era um risco considerável." E Snu, no meio de tudo isto? "Era uma mulher muito avançada para a época, sobretudo para o Portugal dessa época. Ela vem de uma alta burguesia escandinava, é uma mulher culta, de mentalidade liberal, que contrasta com o que eram as mulheres da mesma classe social no nosso país: boas donas de casa, educadoras dos filhos, quando muito decorativas. Não admira que Sá Carneiro se tivesse fascinado.".Tendo perdido a mãe em tão tenra idade, Rebecca Abecassis admite ter levado muito tempo a compreender a verdadeira dimensão da sua figura: "Só nos últimos 20 anos tomei verdadeiramente consciência da marca que deixou em Portugal, com os livros que publicou, e também com a coragem que teve em assumir a relação com Francisco Sá Carneiro."