Sobe-se uns degraus e uma das estantes dedicada à manga fica logo de frente, disposta numa meia-lua que tem tanto de prático em termos de consulta como de aconchegante em termos de arquitetura. Para os geeks de banda desenhada - ou otakus, os obsessivos por manga e anime, nomes que se dá à BD e aos desenhos animados japoneses -, esse pormenor conta. A capacidade imersiva da história que têm nas mãos estende-se ao local onde a consultam, lêem e decidem eventualmente comprá-la. De calças de ganga e t-shirt amarela com o símbolo dos Piratas do Coração a preto, ao otaku Ricardo Lopes faltam-lhe apenas o gorro, a barba em forma de pera e a espada, quando entra na loja BDMania, em Lisboa, para encarnar Trafalgar D. Water Law, personagem de One Piece..One Piece é a série de manga, expandida entretanto a série de anime e a videojogo, mais vendida da História. Publicada desde Dezembro de 1997, a One Piece foi criada por Eiichiro Oda, já vendeu mais de 440 milhões de cópias em todo o mundo e bate recordes de publicação no Japão. Do subgénero sh-onen, dirigido ao público jovem masculino, cada capítulo da série é publicada semanalmente na revista japonesa Sh-onen Jump, juntamente com outros capítulos de outras séries. Os capítulos de cada série são depois reunidos em volumes, os chamados tank-obon. A One Piece vai em 953 capítulos e 93 tank-obon. Na BDMania, está à venda uma caixa, com os volumes 24 a 46, que custa 232,50€. Um cliente pegou nela, admirou-a, sorriu-lhe e voltou a pousá-la.."A One Piece é diferente das outras mangas", explica Ricardo Lopes. "Se pegar em cinco bandas desenhadas ali na livraria, em pelo menos duas ou três posso assegurar que as caras vão ser semelhantes em termos de estrutura, de tamanho dos olhos, de estilo. A One Piece deita isso tudo por água abaixo", refere este gestor de dados, 26 anos, ele próprio autor de banda desenhada com a série Júpiter. Já fez cosplay, de "costume play", vestir-se e representar uma personagem: no caso, a de Trafalgar D. Water Law.."É a manga que tem maior consistência. Todas têm altos e baixos, mas os baixos vão até ao mau, o que retira a vontade de continuar a lê-las. Já com a One Piece, tudo faz sentido, os baixos nunca são maus. Há muita profundidade para o que uma pessoa está habituada", conta Filipe Pinto, 28 anos, fã de manga e de anime que diz ser a One Piece a sua preferida. Começou por ver os desenhos animados na SIC Radical, depois em streaming, e diz hoje já não acompanhar o anime porque tem a leitura da manga toda em dia. Tem 30 volumes da série..Ricardo Lopes tomou conhecimento da manga pelo anime e do anime pelo videojogo, na casa de um amigo. "One Piece apresenta um universo novo. Ninguém sabe ao certo o nome do planeta, mas é um mundo dominado por oceanos, com pequenas nações e cidades espalhadas por ilhas. Existem quatro grandes oceanos, que convergem num único ponto de acesso, uma grande faixa oceânica chamada Grande Linha. É a estrada por onde todos os piratas querem seguir." A história começa com a morte de Gol D. Rogers, o Rei dos Piratas, que, antes de falecer, anuncia que tem um tesouro escondido, chamado One Piece. O tesouro encontra-se no Mundo Novo, na Grande Linha. Quem o descobrir, será o novo Rei dos Piratas. Começa assim a jornada da personagem principal, Monkey D. Luffy, e da sua tripulação, Piratas do Chapéu de Palha, assim como de outras tripulações, entre as quais a dos Piratas do Coração. Tal como as outras personagens, Luffy tem um superpoder: o seu corpo é de borracha e estica-se.."Um dos grandes charmes que a One Piece tem é o facto de o pirata, que é o vilão das histórias normais, ser aqui glorificado como epíteto de liberdade. Chega ser um herói", defende Ricardo Lopes. A rigidez da dualidade certo/errado, herói/vilão, é quebrada. Não há lados certos ou errados, há atitudes certas ou erradas. A Marinha, a principal força do governo mundial, é muitas vezes tirânica.."O maior chamariz é a complexidade da trama", considera Filipe Pinto, empregado de mesa de profissão. "Há muitas subtramas, que vão ao passado e que são necessárias para perceber o futuro." Os saltos no tempo são recorrentes, as personagens podem desaparecer durante algum tempo para melhorarem a sua performance - não são fortes, tornam-se fortes.."A profundida que algumas personagens têm, como podemos ver nas sequências de flashbacks que mostram a história de infância das personagens da tripulação, são das passagens mais esmaga-corações da série", complementa Ricardo Lopes. E dá um exemplo, contado ao longo de vários capítulos. O pai da rena Tony Tony Chopper, da tripulação de Monkey D. Luffy e que adquire características humanas, está muito doente e o filho enceta uma demanda perigosa para encontrar uma planta que vira num livro com o símbolo da vida. O pai, médico, emociona-se com a atitude do filho e ingere a planta. Chopper vem a descobrir que a planta, com o símbolo da caveira - também o dos piratas, que o pai lhe tinha dito ser símbolo de liberdade, de vida -, é afinal venenosa. E o pai antecipa-se a ser morto pelo rei da ilha para não ser a planta a responsável pela sua morte.."Tal como o Star Wars, o Game of Thrones ou O Senhor dos Anéis, a complexidade de One Piece dá muito azo a discussões em fóruns. Existem teorias com 15 anos que não foram ainda reveladas ou para as quais não há sequer resposta", conta Filipe Pinto. Como explica o onepiece.fandom.com, a SBS (Suru Boshu Shitsumon, "Aceito Questões") é uma coluna de perguntas e respostas publicada com os capítulos na qual Eiichiro Oda revela informações sobre a história e as personagens. Foi na SBS que as idades dos Chapéus de Palha foram reveladas pela primeira vez. Por vezes, as informações sobre as personagens são sugeridas pelos próprios fãs e tornam-se depois oficiais. "Existem muitas pessoas a acharem que eles vão chegar a Raftel, vão ver o One Piece e vai haver lá um pedacinho de papel", sorri Ricardo Lopes, "a dizer 'o verdadeiro tesouro foi a viagem, foram os amigos'."