Onde manda o protocolo não há corridas. Mas há exceções
A história conta uns anos, mas ainda é lembrada na Assembleia da República. Nas escadarias do Palácio de São Bento tudo estava a postos para receber um chefe de governo estrangeiro, com todos os preceitos protocolares que a situação exige. Só faltava Narana Coissoró, o vice-presidente do Parlamento que à data tinha sido designado para receber o convidado e conduzi-lo ao interior do palácio. Mas, quando faltavam dez minutos para a hora, nem sinais do anfitrião. Faltavam cinco minutos para a hora, e nada. E já estava mesmo na hora quando um carro para na Calçada da Estrela e de lá sai o vice-presidente da Assembleia da República a correr a grande velocidade em direção ao seu posto protocolar, poucos segundos antes de o chefe de governo convidado pôr o pé na entrada fronteira ao Parlamento.
Não foi bem uma quebra de protocolo - porque este só tem início na presença do convidado -, mas foi um raríssimo momento de uma atividade "proibida" em cerimónias oficiais: correr. Até porque há fatores que o desaconselham, a começar pela indumentária, que até pode dificultar andar, quanto mais correr: numa das visitas dos agora reis de Espanha a Portugal, o protocolo espanhol pediu que a princesa Letizia acompanhasse Felipe na revista à guarda de honra, uns passos atrás do príncipe. Assim foi feito, mas a revista da princesa ficou-se pela metade: os saltos de cerimónia não lhe permitiram acompanhar o passo da revista.
Onde manda o protocolo, não há corridas. Nem vale a pena estugar o passo: quem chega tarde perde o lugar. Imagine-se um governante com lugar na fila da frente de uma cerimónia, que comete a ousadia de chegar depois do Presidente da República (o número um protocolar de qualquer evento onde marque presença). No entretanto, a cadeira já foi ocupada pelo titular hierárquico seguinte ou desapareceu, retirada com a maior discrição possível. O governante seguiu para a plateia ou para qualquer lugar discreto onde a entrada tardia não se faça notar. "Não vale a pena correr. Quem chega a atrasado pura e simplesmente perde o seu lugar", diz Nuno Miguel Henriques, docente e formador em Protocolo e Comunicação. A não ser que o atrasado seja o próprio anfitrião, coisa que Nuno Miguel Henriques já viu acontecer: "Uma vez acompanhámos um ministro que ia a um evento numa câmara. Quando lá chegámos, não havia sinal do presidente e ligámos ao chefe de gabinete, que nos respondeu que o presidente ainda estava em casa a tomar banho. Fomos fazer tempo com o ministro para um café." Não se sabe se o autarca correu a grande velocidade para a câmara, mas eis o que se chama uma falha protocolar. "Fala-se muito em bom senso. Em protocolo não há bom senso, isso é para a etiqueta. Em protocolo há regras precisas e muito claras."
Mas as regras quebram-se. Nas muitas décadas de serviço na diplomacia, o embaixador Francisco Seixas da Costa viu pessoas chegarem atrasadas, correr para não chegar tarde e também umas quantas quebras de protocolo pelo caminho. "A pressão do tempo conta", diz ao DN, lembrando uma história que se passou com Ramalho Eanes na presidência, numa das cerimónias mais formais e ritualizadas da vida política - a apresentação de cumprimentos por parte do corpo diplomático. "A cerimónia atrasou-se, o Presidente da República estava furibundo. Nos corredores longos do Palácio de Queluz, perante a exasperação do chefe de Estado" - e a impossibilidade de correr até ao outro lado para fazer entrar os membros do corpo diplomático -, o "funcionário do protocolo dá uma ordem batendo as palmas: "Que saia o núncio [o núncio apostólico, decano do corpo diplomático]."
E na diplomacia, corre-se? "A diplomacia tem um tempo que nem sempre corresponde ao tempo público, mediático, mas não é, como dizia alguém, a arte da inércia." "A diplomacia sofre o impacto da instantaneidade da informação cá fora", mas isso não deve fazer a diplomacia correr: "As pessoas que mais têm sucesso na vida diplomática são os falsos lentos."
"Quando entrei para o Ministério [dos Negócios Estrangeiros] escrevia-se calmamente um telegrama contando a história toda. Uma vez estava a escrever um telex sobre um discurso de Margaret Thatcher, quando me telefonam do Palácio das Necessidades [a sede do MNE] a dizer "estás a ver a Sky?"" - o discurso estava a ser acompanhado em direto em Lisboa. Este episódio deu ao embaixador um sinal de que o mais importante é "parar um pouco e olhar para as coisas". "O diplomata não tem de andar a correr atrás da imprensa."