Do Rio Kwai a Apocalypse Now: a queda do cinema para as pontes
Para a história dos épicos cinematográficos, A Ponte do Rio Kwai ficou (e permanece) como uma referência incontornável. Adaptando o romance de Pierre Boulle, o filme dirigido por David Lean narra a construção de uma ponte ferroviária, por britânicos prisioneiros de japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial. A situação é suficientemente tensa e dramática para atrair uma perversa sugestão simbólica: aquela ponte que, por definição, liga as duas margens de um rio é também um fator de divisão entre os próprios oficiais britânicos.
Foi em 1957 (a estreia portuguesa ocorreria no ano seguinte). A vibração da história e a intensidade dos temas de A Ponte do Rio Kwai rapidamente inscreveram o filme no imaginário popular. A célebre Marcha do Coronel Bogey, assobiada pelos prisioneiros, impôs-se mesmo como emblema sonoro de uma epopeia que, na época, acabou por encarnar um novo modelo de espetáculo: a "superprodução".
Nos nossos dias de produção rotinada e rotineira de filmes de super-heróis, identificar A Ponte do Rio Kwai como uma superprodução pode parecer a aplicação de um mero rótulo consagrado pela indústria. Na verdade, naquele final da década de 1950, o que estava em jogo era francamente mais dramático. A superprodução, como o nome sugere, alicerçada em gigantescos orçamentos, decorria de uma desesperada estratégia: a indústria cinematográfica vivia a primeira debandada dos espectadores das salas escuras para... os seus lares. Entenda-se: para a televisão.
Filmes como A Ponte do Rio Kwai apostavam na exploração de uma dimensão de espetáculo cuja imponência começava nos próprios ecrãs. É nesta época que se consolidam os "formatos largos", a começar pelo CinemaScope comercialmente estreado em 1953 com o filme A Túnica, de Henry Koster, drama da antiguidade romana protagonizado por Richard Burton). Tratava-se, afinal, de seduzir os espectadores através da grandeza física do próprio ecrã, obviamente impossível de desfrutar nos televisores caseiros.
Os filmes rodados em película de 70 mm, suscitando a exploração de ecrãs ainda maiores - como era o do cinema Monumental, em Lisboa (demolido em 1984) -, seriam o passo seguinte nesse processo de reconversão do parque de exibição. David Lean entraria para a história como um dos grandes especialistas de tal modelo de espetáculo, tendo prosseguido a lógica de A Ponte do Rio Kwai com a realização de Lawrence da Arábia (1962) e Doutor Jivago (1965).
O duradouro impacto de A Ponte do Rio Kwai não pode ser dissociado do seu objeto central, que é também o motor da sua história. Estamos perante uma narrativa em que a "ponte" está longe de se esgotar numa referência instrumental: a possibilidade de construir e atravessar a ponte envolve também o pressentimento de que algo da aventura existencial daqueles seres humanos está a evoluir "para o outro lado", transformando o sentido das suas ações e o sentido da própria história coletiva em que participam.
Não há, como é óbvio, um género cinematográfico "sobre pontes", mas é um facto que vários cineastas usaram essa ideia de passagem como pontuação dramática dos seus filmes. Um dos exemplos mais fascinantes está nas imagens de abertura de Frenzy - Perigo na Noite (1972), o filme que levou Alfred Hitchcock de regresso a Londres, depois de várias décadas a trabalhar em Hollywood: no final do genérico, a abertura do tabuleiro da Tower Bridge funciona como a cortina teatral que dá passagem a alguém que volta a visitar aquele cenário.
Por alguma razão, o filme que, em 2014, reuniu cineastas de todo o mundo (Jean-Luc Godard, Sergei Loznitsa, Teresa Villaverde, etc.) em torno do património histórico e cultural da Bósnia se intitula Pontes de Sarajevo. A ponte é, de facto, um objeto que, mesmo quando destruído, instala uma expectativa paradoxal: pode ser redentora ou infernal, pode envolver uma promessa de sonho ou funcionar como prólogo de um pesadelo. Lembremos a cena dantesca da ponte de Do Lung em Apocalypse Now (1979), de Francis Ford Coppola - para lá daquela barreira, aconteça o que acontecer, todos (incluindo o espectador) sabem que nenhuma visão tradicional será suficiente para dar conta das convulsões da vida humana.
Enfim, a memória cinéfila ensina-nos que, não poucas vezes, as pontes são também indissociáveis dos mais contrastados impulsos românticos. O muito esquecido, e muito belo, filme rodado por Leos Carax em 1991 pode servir de exemplo: Les Amants du Pont-Neuf é a história de um delírio amoroso que tem como cenário principal uma das pontes mais lendárias de Paris (mesmo se o filme foi, no essencial, rodado num cenário-réplica construído no sul de França).
E importa não esquecer as derivações de Woody Allen e Clint Eastwood, respetivamente em Manhattan (1979) e As Pontes de Madison County (1995). Para Eastwood foi, por certo, o momento mais romântico (tragicamente romântico, entenda-se) da sua filmografia. No caso de Woody Allen, a cena emblemática da Ponte de Manhattan, em que ele contracena com Diane Keaton, tornou-se um ícone da própria cidade de Nova Iorque - para além do esplendoroso preto e branco das imagens, será importante não esquecer que na banda sonora estamos a escutar a música de George Gershwin.