A Exposição Universal 2015 realizou-se em Milão, Itália, e o seu lema foi "A alimentação no mundo". É assunto que nos interessa a todos e dele todos sabemos um pouco. Que o Canadá não é reputado pelas suas tâmaras ou que há uma ligação entre o bacalhau e a Noruega ou que há uma história de amor entre as laranjas e o Mediterrâneo. Tente entrar num restaurante lisboeta numa sexta-feira à noite sem ter prevenido o dono da casa: "Olhe que vou passar por aí às 20.30 e levo três amigos." E, enquanto espera no passeio, confirme: comida é assunto que junta muita gente.
Foi o que aconteceu, três em quatro membros da ONU, 142 países, fizeram-se representar em Milão. Nunca os pavilhões de uma Exposição Universal foram tão saborosos. Mas Portugal não esteve em Milão.
2015, eram aqueles tempos admiráveis à la troika, tempos de "qual é a parte do não há dinheiro que você não entendeu?" Alguém poderia pensar: lá perdemos uma oportunidade de mostrar o nosso arroz de cabidela, o copinho de ginjinha, a maçã-bravo-de-esmolfe e, a nossa cereja em cima do bolo, o pastel de nata... Mas não venho aqui falar das nossas rendas de bilros da alimentação. Refiro-me à alimentação em grande, à distribuição mundial dos produtos alimentares. Isto é, a nossa obrigação em não deixar arrefecer a memória da nossa gloriosa participação em levar pratos distantes a mesas longínquas. Há muito tempo que algumas dessas uniões improváveis se tornaram parte do quotidiano e da cultura-fundo de povos, mas, ainda há poucochinhos séculos, ali ou acolá, não se conheciam aquele fruto, aqueloutro cereal, essoutra bebida... Enfim, a viagem da comida pelos mares à volta e por terras adentro.
O daqui para ali da cana-de-açúcar e do abacateiro, a história do viajante amendoim, o milho turista, o cacaueiro que partiu e a pimenteira que chegou. Um dia, o sargento luso-brasileiro Francisco de Melo Palheta (nascido em 1670, em Belém do Pará ou na alentejana Serpa, sei lá) seduziu a mulher do governador francês da Guiana, roubou-lhe uma muda de café arábica e levou-a para o Brasil. Quando, numa esplanada de Ipanema, o leitor hesitar entre uma água de coco e um cafezinho, saiba que não pode fugir ao de cá para lá dos portugueses. Do café já temos as precisões de quem levou aquilo que se tornou uma das imagens de marca do Brasil; do coco ainda está para saber qual o veleiro que sulcou o Índico e aportou num porto brasileiro.
E se o leitor for brasileiro, descanse que os portugueses não lhe podem cobrar por isso: o que eles deram, tiraram. Enfim, trocaram. Levaram para Angola a mandioca brasileira e fizeram com ela o mais popular prato luandense, fubá amaciada com azeite de dendém (ou óleo de palma): este, entretanto, partiu da costa atlântica africana para dar ainda mais gosto à comida da baiana de Salvador.
E continuemos nesse debate interatlântico: além da mandioca, o Brasil exportou para África o milho. Dividindo os países por gostos de que se ignoram as causas. Se no norte de Angola se come mais a mandioca, no sul é o milho, divisão que ocorre também no continente: na Nigéria, a fubá é de mandioca, no Zimbabwe, a farinha é de milho.
Troca. E nem sabem quanto! O milho americano que partiu pelo mundo fora no Brasil, um dos pontos da sua difusão histórica mundial, é comido como mingau. Lá, se ao milho se põe leite de vaca ou de coco, no nordeste brasileiro chamam-lhe munguzá. Já no sul do Brasil chamam-lhe canjica. Agora reparem, munguzá, canjica... Ambas vêm do quimbundo angolano: mukunza e kanjica. Quer dizer, o milho foi do Brasil para Angola e as palavras sobre o milho foram de Angola para o Brasil. Não sem razão, o palato e a palavra coabitam no mesmo órgão do corpo humano, a língua. Resumindo, comer é eminentemente cultural e contar a maravilhosa viagem do comer pela história é, nesta, um seu importante capítulo.
Um mestre da nossa língua, o angolano José Eduardo Agualusa (já não sei se angolano, português ou carioca), tem um livro chamado Um Estranho em Goa. É um livro para ler comendo uma manga e, por falar nisso, as mangueiras são originárias da Índia e do Índico. Houve tempos em que não havia mangas por aqueles lugares de referência do Agualusa e se hoje as há é talvez uma das razões que levaram aquele escritor a escrever aquele livro. Também a batata veio dos Andes e um dia enterrou-se nas planícies da Polónia. Quem leu O Tambor, de Günter Grass, sabe que não se poderia entender a história moderna da Polónia sem a batata, mas isto é para outro artigo. Escrever sobre a Viagem da Comida é como as cerejas...
[Artigo originalmente publicado a 26 de outubro]