"Ainda há muito por explorar, muitas montanhas que não foram subidas por ninguém"

Aos 52 anos, <strong>João Garcia</strong> subiu ao topo do Evereste, completou as 14 montanhas com mais de 8000 metros e chegou aos cumes mais altos de cada continente. Sempre sem oxigénio artificial, ponto de honra do alpinista que escreve livros, dá palestras, é guia de montanha e continua a desafiar-se a si próprio e a procurar trilhos por explorar. Hoje, e durante três dias, o Global Exploration Summit - GLEX Lisboa 2019, junta exploradores na capital portuguesa.
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O segredo não está em nunca cair, mas em saber levantar-se." "Só atinge o topo quem se esforça." Durante a conversa, por telefone, através do WhatsApp, no pouco tempo de wi-fi que João Garcia tinha disponível em Itália, são várias as frases que soam a discurso motivacional. Certamente, foram já usadas nas inúmeras palestras que o alpinista dá em reuniões de grandes empresas, para as quais é convidado a partilhar a sua experiência. Mas ao contrário do que acontece quando as lemos em livros de au­toajuda ou ouvimos a gurus do pensamento positivo não soam vazias. Têm uma história. São expressão de um percurso de vida com altos e baixos que lhes dá significado e faz delas exemplo a seguir.

Foram mais os altos - além do topo do Evereste, o alpinista português completou as 14 montanhas com mais de oito mil metros e chegou aos cumes mais altos de cada continente, sempre sem oxigénio artificial.

Mas em 1999 quando chegou ao cume do Evereste, a 8850 metros de altitude, onde João Garcia colocou a bandeira portuguesa, sucedeu-se uma autêntica descida aos infernos, que custou a vida do amigo e sócio, o belga Pascal Debrouwer, e lhe deixou marcas para sempre. A história é conhecida: as queimaduras por congelamento das extremidades obrigaram à amputação de alguns dedos das mãos e dos pés e a um implante de nariz. João Garcia contou-a no livro A Mais Alta Solidão, continuou a contá-la em Mais Além - Depois do Evereste, e usa-a como âncora das suas palestras. A tragédia não o fez desistir, fê-lo crescer. E aprender com os erros. E esta não foi a primeira lição que as montanhas lhe deram.

Nascido e criado junto ao mar, nunca lhe sentiu o chamamento, aquele que tocou a maioria dos exploradores portugueses. Foi a montanha que o atraiu, pela dificuldade que constituía, pela inacessibilidade que dava vontade de desafiar. "A montanha foi o cenário que me fascinou mais, talvez pela inacessibilidade. Como se diz nos negócios, a inacessibilidade valoriza o produto", diz, embora confesse que ao fim de 35 anos continue a não saber muito bem porque dedicou a vida a escalá-las. "É a resposta mais fácil, não é? Mas não sei mesmo explicar. O escutismo influenciou, o exemplo de Baden-Powell, a ideia de vencer dificuldades, o contacto com a natureza, não sei."

Não sabe, mas o certo é que depois de, aos 16 anos, explorar a serra da Estrela e escalar o monte Branco, nos Alpes, nunca mais parou. "Percebi que só atingia o topo quem se esforçava. Por mais bem equipados que os outros estivessem, sem esforço não chegavam lá. Foi a primeira lição que tirei da montanha e nunca me esqueci. Há uma honestidade e uma justiça nesta atividade que não existem noutros desportos, em que quem tem mais dinheiro ganha."

Instalado o desejo de aventura, assumiu-se como treinador de si próprio e iniciou um percurso cujo objetivo era a contínua superação. Sempre sem oxigénio artificial, que continua a considerar "batotice", em 1993, chegou ao cume do Cho-Oyu (8201 m), no Tibete. No ano seguinte foi a vez do Dhaulagiri (8167 m), no Nepal. Após duas tentativas falhadas no Evereste, em 1997 e 1998, tornou-se o primeiro português a conquistá-lo, no ano seguinte, numa expedição coorganizada por si e cuja descida terminou em tragédia. Apesar disso, e das sequelas físicas com que ficou, em 2001 estava de volta à ação, com a subida ao Gasherbrum II (8036 m), no Paquistão. Em 2004, integrou uma expedição ao Gasherbrum I (8068 m), e no ano seguinte subiu em solitário ao Lhotse (8516 m).

Em 2006 iniciou o projeto À Conquista dos Picos do Mundo e organizou as expedições ao Kangchenjunga (8586 m), no Nepal, e ao Shisha Pangma (8013 m), no Tibete, alcançando ambos os cumes. Seguiu-se o K2 (8611 m), no Paquistão, em 2007, e o Makalu (8463 m), no Nepal, em 2008, chegando ao cume a 14 de maio e atingindo a 17 de julho o cimo do Broad Peak (8047 m), no Paquistão.

No ano seguinte, em menos de dois meses conquistou dois cumes de oito mil metros. A 28 de abril o do Manaslu (8163 m), no Nepal, em solitário, e a 10 de julho o do Nanga Parbat (8125 m), no Paquistão.

Em 2010, com a conquista do Annapurna (8091 m), no Nepal, tornou-se o décimo alpinista no mundo a terminar a proeza de escalar as 14 montanhas com mais de oito mil metros sem oxigénio artificial nem carregadores de altitude e, em dezembro do mesmo ano, completou o projeto Sete Cumes que consistia em escalar a montanha mais alta de cada continente: Evereste (Ásia), Aconcágua (América do Sul), monte McKinley (América do Norte), Elbrus (Europa), maciço Vinson (Antártida) , Kilimanjaro (África), Kousciuszco (Oceânia).

Hoje, nove anos depois, já "reformado" dos oito mil metros, diz que o show off é coisa do passado. A maturidade fá-lo olhar para trás e tanto sentir que fez quase tudo como que está quase tudo por fazer. "É por isso que continuo a subir montanhas com tanto gosto. O Evereste, as 14 montanhas, os sete cumes, foram projetos de quantidade, de recorde, que impressionavam por isso, mas ainda há muito por explorar, muitas montanhas que não foram subidas por ninguém."

E agora podem sê-lo, com outro objetivo, o de participar ativamente na luta pelo planeta. "Talvez assim deixemos de ser os tais "conquistadores do inútil". Um dos papéis do alpinista hoje é criar awareness sobre o que está em risco e em causa. Podemos ser úteis nem que seja como fonte de inspiração e transmissão de valores, como a honestidade e a ética, para que os mais novos os incorporem."


Para João Garcia, "explorar é não saber o que vamos encontrar, é perceber se é possível ir por ali, é às vezes ter de decidir dar meia volta e voltar para trás, porque essa pode ser a atitude mais corajosa a tomar. Voltar para trás exige mais coragem, maturidade e experiência do que continuar". Esta talvez tenha sido a maior lição que a montanha lhe deu.

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