Helena Canhão defende um SNS onde os jovens médicos voltem a sentir que o seu trabalho tem um propósito e que estão em missão.
Helena Canhão defende um SNS onde os jovens médicos voltem a sentir que o seu trabalho tem um propósito e que estão em missão.Paulo Alexandrino Global Imagens

Helena Canhão. “A formação médica não é cara para o Estado em Portugal”

Quanto investe o Estado português nos alunos de Medicina? Os estudantes ficam a dever a formação ao Estado? A médica, professora, diretora da Nova Medical School, e também presidente do Conselho de Escolas Médicas, explica ao DN a sua visão. E considera que famílias e universidades pagam mais.
Publicado a
Atualizado a

Não é a primeira vez que a médica, professora e diretora da Nova Medical School fala ao DN das características do curso de Medicina, que diz ser diferente dos outros, e da formação médica em si em Portugal. Do lado de quem forma, a preocupação está focada na perda de qualidade e no que é preciso fazer para mudar o estado atual. Do lado de quem governa, tenta-se soluções para fixar médicos no serviço público, onde se forma a esmagadora maioria dos futuros médicos. 

O mote para esta conversa é a medida colocada novamente em cima da mesa pelo Programa Eleitoral do PS que prevê a vinculação dos jovens médicos ao SNS após o curso. Helena Canhão diz que o importante não é a origem da proposta, mas a medida em si. E, na sua opinião, falando estritamente como médica e professora, já que como presidente do Conselho Nacional das Escolas Portuguesas (CEMP) diz não o poder fazer - “não costumamos discutir medidas de partidos e todas as posições são conjuntas” -, “num mundo global como o de hoje a medida não faz sentido”.

Para Helena Canhão, é preciso criarem-se condições para voltar a dar aos futuros médicos o sentimento de que “o seu trabalho tem um propósito”, que “estão a realizar uma missão”. Aos médicos formadores é preciso dar o “reconhecimento pelo que fazem”, até porque “a esmagadora maioria nada recebe por este trabalho”. Às universidades, é preciso dar “mais autonomia”. “O pior que pode acontecer ao país é a formação médica perder qualidade”.

O PS incluiu no seu programa eleitoral a vinculação de médicos ao SNS após o curso. É uma solução para fixar médicos no SNS e não deixar que o ensino se degrade? 
Para mim é indiferente se é uma medida do PS ou de outro partido. Tanto faz a origem. E o que tenho de imediato a dizer é que não é uma solução.

Porquê?
Porque em Portugal temos licenciaturas de três anos para quase todos os cursos com uma propina de 697 euros e mais dois anos de mestrado, e aqui as propinas são definidas pelas escolas. Já não há mestrados integrados, excepto para alguns cursos, como Medicina, em que a formação é de seis anos e durante este período os nossos estudantes pagam 697 euros de propina.

Um dos argumentos usados é que o curso de Medicina é mais caro que outros e o Estado paga essa formação...
É mais caro. O custo por aluno é cerca de 12 mil euros ao ano - por isso é que as faculdades privadas que já estão no mercado estão a cobrar esse valor. Mas nas faculdades públicas, o Estado tenta compensar este valor com verba do Orçamento do Estado e dá às faculdades cerca de 4500 euros por aluno ao ano. O restante valor (mais de seis mil euros) tem de ser coberto com receitas próprias das universidades, que o fazem com muita dificuldade. E para isto vendemos formação avançada e outros serviços. Mas o que quero dizer é que o Estado em si não tem um custo excessivo ou proporcional ao custo do estudante. Ou seja, a formação médica não é cara para o Estado em Portugal. É preciso que as pessoas percebam isto. O valor que o Estado paga diretamente está aquém do valor que um estudante custa.

E o Estado somos todos nós, com os impostos que pagamos...
Claro. E comparativamente, as famílias contribuem com muito mais, com propinas, material, alimentação, estadia e outros custos indiretos. E as universidades também. É certo que o Estado investe na Educação e nas universidades, mas, apesar de tudo, a formação médica em Portugal sai muito mais barato ao Estado do que em muitos outros países europeus. Por exemplo, na Dinamarca é o Estado que paga, de facto, a cada estudante o seu curso - as famílias não pagam nada mais do que os seus impostos e as universidades também. O orçamento do governo já contempla o pagamento do custo dos estudantes. Em Portugal, não. Portanto, o Estado português paga um custo abaixo do real para a formação médica pré-graduada.

Deste ponto de vista o argumento de que os estudantes deveriam compensar o Estado faz sentido?
Não. Mas há ainda outro aspeto: quando o estudante acaba os seis anos de formação académica já é médico, mas não pode sair do curso e começar a exercer. Tem de estar mais um ano vinculado a um hospital, em que é Interno de Ano Comum. Só depois pode exercer em qualquer sítio, mas se quiser fazer uma especialidade tem de fazer a Prova Nacional de Acesso e concorrer às vagas que abrem nos hospitais, de acordo com a capacidade formativa de cada um, com a sua nota. E, na esmagadora maioria, estas vagas são em hospitais públicos - em unidades privadas não chegam a dois por cento. Logo aqui o jovem médico estabelece um contrato com o SNS, onde trabalha para aprender durante mais quatro a seis anos. A especialidade de clínica geral é quatro anos, as especialidades médicas cinco e as cirúrgicas seis. Durante estes anos, o médico já trabalha para pagar a sua formação e já está a compensar o Estado. Mesmo que faça tudo direitinho, um aluno de Medicina entra aos 18 anos na faculdade, acaba o curso aos 24 e depois está, pelo menos, até aos 30 a trabalhar para o Estado com um salário que não é sequer suficiente para o trabalho que faz. Portanto, no meio disto tudo não considero que o investimento do Estado não esteja já a ser compensado pelo trabalho do médico interno.

Tendo em conta o mundo global em que se vive, a medida faz sentido para fixar médicos?
O mundo evolui. No meu tempo, entrei em 1985 na faculdade, considerávamos que tínhamos uma carreira pela frente num sítio e ficávamos. As gerações de agora são completamente diferentes, mudam de emprego dez vezes ou mais. E não é uma medida destas que os fará ficar. O que estamos a ver nas faculdades é os jovens logo nos primeiros anos a quererem saber como é a Medicina noutros países. O facto de as condições no SNS não serem boas está fazer com que os jovens médicos comecem a escolher outras áreas, como a indústria farmacêutica ou consultoria. Ou que vão fazer a especialidade noutros países, onde os cursos portugueses são reconhecidos, com salários mais altos e condições diferentes. Hoje, para um jovem, viver em França, na Alemanha ou no Reino Unido é praticamente o mesmo que viver em Portugal. As distâncias foram encurtadas e os jovens vão-se embora se não tiverem condições. Não vale a pena este tipo de medidas.

O que deve ser feito?
É preciso voltar a ter um SNS onde as pessoas gostem de trabalhar, onde sintam que estão em missão e a servir os outros. Que sintam que o seu trabalho tem um propósito e um significado. Acho que isto é o mais importante, não só para a Medicina como para qualquer profissão. Há pouco falávamos do custo da formação médica e, em Portugal, temos imensos médicos que estão a formar os nossos estudantes internos sem receberem nada por isso, mas porque é o habitual. Quando digo que o curso de Medicina não é dispendioso para o Estado é por isto também. Os médicos precisam de um salário normal e digno, de um tempo protegido para fazerem este trabalho de formação, esta é a única forma de podermos continuar a aceitar ter os estudantes nos hospitais e a dedicar-lhes tempo. Num ambiente hospitalar a formação também se faz pelo exemplo, e isso não tem preço. É preciso fazer este reconhecimento para que os médicos continuem a formar os mais jovens.

Neste sentido, qual é a principal preocupação do CEMP?
A nossa principal preocupação é a qualidade da formação médica ser afetada. Portugal precisa continuar a ter uma formação de excelência. Há coisas que podemos ensinar com tecnologia, com modelos e robots, mas a formação que se faz à cabeceira do doente, para que este seja tratado com dignidade, não pode ter sete a oito estudantes por formador. Não podemos ter sete a oito estudantes a verem fazer um ecocardiograma ou a apalpar uma barriga ou a suturar um doente. Precisamos de um SNS com formadores e com disponibilidade para formar. Se não tivermos isto, vamos ter piores médicos e depois não haverá só um problema de quantidade, mas de qualidade. E isso é o pior que poderia acontecer a Portugal.

O que espera o CEMP depois das legislativas de 10 março?
Do ponto de vista das universidades, penso que é preciso haver mais autonomia, em termos de agilidade e de capacidade, porque continuamos a ter subfinanciamento. E a questão é que o Estado não vai conseguir financiar tudo e as famílias também não podem continuar a ser sobrecarregadas com mais impostos - já pagam muito e seria injusto. Por outro lado, penso que, de uma forma geral, todos concordamos que se pagamos impostos devemos ter direito a tudo o que é básico para a nossa existência, como a Saúde e a Educação, que são fundamentais para o desenvolvimento da população e o acesso tem de ser igual. Portanto, temos de lutar pelo ensino público e pelo sistema de saúde público. Só o facto de se dar instrumentos às universidades públicas que lhes permitam ir buscar receitas próprias, como acontece com as privadas, que, por exemplo, podem captar alunos internacionais, já ajudava. Se não recebemos o suficiente do Estado, se não devemos cobrar mais impostos às pessoas, ficamos num espartilho que não nos deixa ser competitivos e em que perdemos qualidade. E, como digo, isso é a pior coisa que pode acontecer a Portugal.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt