O vírus da gripe em circulação vive há mais de 100 anos e cria sempre excesso de mortes
Mal o ano começou e o site oficial que faz a vigilância da mortalidade em Portugal (evm.min-saude.pt) alerta para a existência de um excesso de mortalidade, que não era expectável. A sua origem pode estar na epidemia de gripe A que se está a viver, originada pelo vírus em circulação, o H1N1, que, na verdade, “cada vez que reaparece tem grande impacto”, afirma ao DN o epidemiologista e professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Manuel Carmo Gomes. Aliás, o especialista diz mesmo que “é um vírus de má memória”. Senão vejamos: “Foi o vírus responsável pela pandemia de 1918-1919, mantendo-se connosco desde essa época, embora com várias mutações. Mas não só esteve associado à Gripe Espanhola, como também na origem da epidemia que nos assustou em 2009, precisamente pelos óbitos que provocou, atingindo muitas pessoas jovens, com menos de 65 anos. Nesta altura, foi também um vírus muito perigoso para as grávidas. Portanto, do ponto de vista clínico é um vírus que deixou más memórias.”
Mas a última vez que os portugueses tiveram contacto com o H1N1 foi precisamente no último inverno antes da pandemia provocada pelo Coronavírus SARS-CoV-2 (2019-2020). Um contacto que Manuel Carmo Gomes diz ter sido “intenso”, pela atividade gripal provocada, embora nos dois anos seguintes, a gripe quase não se tenha feito sentir, dada a dominância da covid-19. “Em 2020-2021, praticamente não houve gripe, em 2022 tivemos gripe de forma muito moderada, com a circulação de um vírus também do tipo A, o H2N3. No ano passado, esteve em circulação outro vírus do tipo A, o H3N2. Ou seja, há quatro anos que não tínhamos contacto com o H1N1 e os sistemas imunitários estão mais vulneráveis ao vírus, principalmente os dos idosos que podem desenvolver outras complicações, sobretudo se não se vacinarem”, argumenta o epidemiologista.
Para Carmo Gomes, o cenário atual de epidemia de gripe é o que pode estar a provocar o excesso de mortalidade registado no site oficial sobre a vigilância da mortalidade, que, ontem, dava indicação de um excesso de 741 óbitos nos últimos sete dias. “A mortalidade está muito acima do esperado”, lia-se à cabeça.
Através deste site é possível verificar que, na quarta-feira, dia 3, o total de mortes no país foi de 514, havendo mais mortes na região do Norte (183), depois na região de Lisboa e Vale do Tejo (169), seguindo-se a região do Centro (99), o Alentejo (30) e o Algarve (18), enquanto os Açores registaram nove mortes e a Madeira seis. “Estou convencido que estamos a assistir a uma epidemia da gripe que está a gerar o excesso de mortes registado”, diz o epidemiologista, sublinhando que se trata de uma epidemia provocada pelo H1N1. E explica: “A gripe tem três tipos, A, B e C, e os dois primeiros são, de facto, os mais virulentos, os que criam as epidemias. O C é muito discreto”.
Outro detalhe que destaca tem a ver com o facto de existirem grupos de indivíduos muito suscetíveis ao H1N1. “Não são só os idosos, mas também as crianças. As que têm menos de quatro anos nunca contactaram com o H1N1, e, no caso da gripe, sabemos que as crianças são as principais disseminadoras da doença. Em geral, não têm complicações, ao contrário dos idosos, mas disseminam facilmente a doença dentro da família e de outros grupos em que estão.”
Segundo a análise do especialista, o cenário de epidemia de gripe que estamos a viver está precisamente relacionado com o facto de haver “uma grande quantidade de pessoas que nunca contactaram com o H1N1 ou que, tendo contactado, já não têm proteção ou que não se vacinaram sequer”. No entanto, sublinha, que o que se sabe até agora do H1N1, é que tem sofrido mutações, mas “não é possível dizer que esteja muito mais agressivo. Os sintomas podem ser mais intensos, todos nós teremos relatos de familiares ou de amigos sobre isto, mas não há um levantamento sistemático nem uma amostra muito grande para se poder comparar com os outros vírus da gripe”.
O lado “bom” deste H1N1, em circulação, é que a vacina recomendada pela Comissão de Vacinação da Direção-Geral da Saúde “tem um bom matching com esse vírus” - ou seja, tem o próprio vírus, podendo atenuar o impacto e as complicações. Portanto, “quem tem indicação para se vacinar e não o fez, deveria fazê-lo”, explica Carmo Gomes, que também integra a comissão da DGS.
Sobre o excesso de mortalidade, o professor refere que “está apenas na faixa etária dos 70 anos, o que é normal com a gripe”, considerando que este H1N1 “não está a matar mais pessoas abaixo dos 70 anos”. Mas o nível de observação desta linha de tendência “ainda tem só duas a três semanas”, reconhece, “sendo preciso mais um tempo para se retirar conclusões”. Por agora, os dados disponíveis permitem perceber que o excesso de mortalidade começou mais cedo na região Norte e que só depois atingiu o Sul. “Na primeira metade de dezembro, já havia excesso de mortalidade no Norte, depois, por volta do dia 18 de dezembro, aparece no Centro, a seguir em Lisboa e Vale do Tejo e por fim no Alentejo, o que pode “justificar que este excesso de mortes está mesmo associado ao frio, embora ainda não tenhamos dados que o comprovem”.
Este ano, o SARS-CoV-2 não parece ser o vírus dominante que está a contribuir para o excesso de mortalidade. A gripe voltou em força e a taxa de cobertura de vacinação para a faixa dos 60 aos 75 anos ainda é reduzida, rondando apenas os 62%, em vez de, pelo menos, 75%, defendem os especialistas. Daí que se possa assumir que o vírus da gripe é o responsável pelo excesso de mortalidade do final de 2023 e início de 2024. Quando terminará este pico, “ainda não se sabe”, remata Manuel Carmo Gomes.