Acidente de trabalho ou estupidez?

Tribunais foram unânimes: abrir propositadamente uma mangueira de ar comprimido junto ao ânus de um colega é um acidente de trabalho
Publicado a
Atualizado a

O dia de trabalho de António não terminava antes da habitual limpeza das máquinas. Torneiro mecânico de profissão, sabia que o material precisava de ser limpo. E no dia 9 de julho de 1999 manteve a rotina, juntamente com um colega. O problema é que naquele dia, talvez mais descontraído do que o habitual, o seu companheiro de jornada resolveu pregar-lhe uma partida. Assim a modos que engraçado. E qual foi a ideia? Pegar numa mangueira de ar comprimido, encosta-la ao ânus de António e libertar "uma quantidade indeterminada de ar".

O cidadão comum, sem estudos em Direito e outro tipo de ciências ocultas, diria que o colega de António foi apenas estúpido, parvo, retardado, atrasado, burro. O Supremo Tribunal de Justiça (2005), porém, teve um entendimento diferente: tratou-se de um acidente de trabalho e, por isso, a seguradora teve de indemnizar António pelas lesões sofridas: perfuração de três centímetros de maior diâmetro do cólon sigmoide, que obrigou ressecção de segmento cólico e colostomia temporária (operação do tipo Hartmann) com posterior reconstituição do trânsito intestinal, que determinou diminuição da superfície do órgão. Em resumo, deve ter doído.

Bem esperneou, juridicamente falando, a seguradora nos tribunais, defendendo desde a primeira instância que tal não se tratava de um acidente de trabalho, uma vez que "as lesões sofridas pelo autor foram provocadas por uma brincadeira de um colega de trabalho deste, lesões que não decorreram de qualquer ato ou atividade relacionados com o trabalho desempenhado pelo autor ou pelo seu colega de trabalho". "Não houve, no presente sinistro, qualquer relação entre a agressão de que foi vítima o sinistrado e os riscos próprios da sua atividade profissional, embora tenha ocorrido no local e tempo de trabalho." O que a seguradora quis dizer é que o acidente resultou da estupidez de um terceiro, mas isto não pode ser dito assim em tribunal.

Na altura, ainda estava em vigor a Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, aprovada nos idos da Câmara Corporativa (órgão criado pelo regime do Estado Novo, não confundir com o blogue do Miguel Abrantes, que afinal se chama António Peixoto). Segundo o diploma legal, acidente de trabalho era "todo o evento que se verifique no local, no tempo e em consequência do trabalho". Mais um argumento a favor da seguradora? Também não.

Primeira instância, Tribunal da Relação e, por fim, o Supremo decidiram a favor do trabalhador. E isto porque, recuando ao "elemento histórico da lei", isto é, projeto, discussão e aprovação, os juízes consideraram que o sentido do texto apontava para que acidente de trabalho fosse "todo o evento que se verifique no local de trabalho, no tempo e em consequência do trabalho". Recordaram os juízes que, durante a discussão da lei, foi retirado do articulado anterior a expressão "salvo quando a este inteiramente estranho".

Os juízes do Supremo Tribunal de Justiça concordaram com os argumentos dos colegas das instâncias anteriores. "Desde logo, porque o trabalhador estava ali", referiram, "naquele local e naquele momento, não por arbítrio seu, mas a cumprir a sua prestação no âmbito duma relação laboral". "Nestas circunstâncias, o direito à reparação só seria afastado se se verificasse algum elemento descaracterizador do acidente, o que - conclui - não aconteceu no caso dos autos (o autor estava a fazer o seu trabalho, não interveio na "brincadeira nem cometeu qualquer ato que tenha induzido ou levado o colega de trabalho a fazer o que fez)".

Portanto, nunca se poderia alegar que o acidente não tinha nada que ver com o serviço, apesar de a mangueira de ar comprido não ser de uso anal. Sendo assim, continuaram os juízes, a seguradora não poderia alegar que o evento nada tinha que ver com o trabalho prestado pela vítima e pelo brincalhão. Quer dizer, com uma mangueira de ar comprimido por perto, tudo pode acontecer, desde a sua utilização original para a limpeza de máquinas, passando por encher os pneus de uma bicicleta, até à vaporização anal de um colega de trabalho.

"Neste circunstancialismo, nunca se poderia sustentar que o evento causador das lesões nenhuma ligação tinha com o serviço que estava a ser prestado no tempo e no local de trabalho para efeitos de afastar a responsabilidade do empregador (independentemente daquele ato ser ou não imputável ao agente, a título de culpa)", finalizaram os juízes conselheiro, mantendo a decisão de pagamento de uma pensão anual de 1456 euros (atualizáveis anualmente) ao sinistrado, mais 11,97 euros a título de despesas de transporte e 1454 euros para indemnizar a incapacidade temporária absoluta que foi determinada.

Meus caros, não experimentem isto no local de trabalho. Pode causar dor e a lei mudou.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt