Passos arrisca-se à fotografia (Episódio 29)
As histórias sobre o sofá do IKEA e da caca de cão à porta de um restaurante de Campo de Ourique, protagonizadas por Passos Coelho, foram publicadas, no ocaso do agosto morno de 2016, na mais velha secção do jornalismo português, a Gente, do Expresso. Já antes do 25 de Abril ela existia. Aparecera logo na segunda edição do semanário, em janeiro de 1973, e apresentou-se assim: "Gente gostaria de ser mais política, mas não pode (...), só ela sabe como é difícil fazer crónica social entre nós sem melindrar os intocáveis." A secção acabara de ser inventada por Marcelo Rebelo de Sousa, um dos fundadores do jornal. Numa biografia de Marcelo, o jornalista Vítor Matos descreveu a Gente: "Com o tempo, a coluna torna-se temível para esses intocáveis."
Estávamos, pois, perante dois daqueles limites (no género, os marcos rodoviários são os mais conhecidos) que nos ajudam a perceber a distância percorrida. O que fora uma ânsia de provocação e crítica tornara--se, em pouco mais de quatro décadas, uma crónica de sinapismos.
Desde a última campanha eleitoral para as legislativas, por conselho do guru brasileiro que lhe inventara um perfil, Passos Coelho vendia-se como um ser simples, regrado - enfim, o modesto Passos. O comunista António Filipe, que fora vice-presidente do Parlamento, teve um dia o azar de referir a um colega do PSD que vira o vizinho a fazer compras em supermercado de Massamá. Depois disso, António Filipe era assediado por magotes de jornalistas que queriam recolher, de um comunista, a visão que ele tivera do líder da direita a acartar sacos de plástico com latas de feijão e esparguete.
Paradoxal evolução, a da Gente! Ela que servira para criar a lenda de um Marcelo que ditava notícias a duas ou três secretárias ao mesmo tempo, ou, aproveitando o facto de se ter tornado ambidextro, a tomar notas, de um telefonema, para o editorial, enquanto com o hemisfério cerebral direito criava um facto político, enfim, ela que fora inventada por um tipo extravagante, punha-se agora ao serviço da vulgaridade de um acanhado homem comum.
Passos ia comprar um sofá de 499 euros, preço em promoção, ao IKEA, e não comprava logo, ia para casa pensar... Passos à porta de um restaurante, prevenindo os transeuntes para não pisarem aquilo... Tal como os vídeos de interrogatórios de "gente importante" caíam, dos céus, na CMTV, não eram repórteres de investigação nos passeios que recolhiam aqueles momentos olvidáveis da vida de um homem comum. Era alguém por ele que fazia saber estas nulidades, propagandeando-o na plenitude da sua vulgaridade. Com os nada a dizer sobre ele, Passos julgava construir o seu pedestal.
Que não se veja nestas linhas algum acinte contra a venerável Gente. Afinal, se dizer que Passos pensava (com ar sofrido) comprar um sofá lhe fazia propaganda, também este folhetim contribuiu, lembrando o facto, para a falta de aura de que ele tanta gala fazia. As oposições, em outros países mais gastadores, faziam governos-sombra para atravessar o deserto. O modesto e poupado Passos não queria desperdiçar em governo hipotético, e preferia personificar com orgulho uma autêntica sombra.
Ser comum, num vulgar - ou vice-versa - era coisa que permitia atravessar uma vida (ou meses de uma inesperada reviravolta política) sem mossa. O pior era quando - apesar de a vulgaridade ser autêntica - a imagem pertencia a um plano traçado por um guru brasileiro que entretanto bazara. Esse plano era o único que o ex-primeiro--ministro ainda tinha - "Pedro, faz pose de gente comum, cara", dissera-lhe há um ano o marqueteiro André Gustavo. Agora, ninguém o ajudava a encontrar um novo plano e dele próprio não se podia exigir nuances. Em Passos, os cantos da boca descaíram e fixaram-se por aí. Tornara-se todo ele um homem sofrido (não era só com as escolhas de sofás no IKEA), e se isso lhe ia bem entre dois sacos de plástico, frente aos microfones transformava-o num profeta da desgraça.
[destaque:Tornara-se todo ele um homem sofrido, e se isso lhe ia bem entre dois sacos de plástico, frente aos microfones transformava-o num profeta da desgraça]
Numa manhã, de passagem pelo vale do Sousa, terras minhotas, suaves, Passos relativizou o país: "O governo ainda tem tempo para poder corrigir este trajeto." Era crítica? Era, mas o que se pedia a um oposicionista era isso, corrigir trajetos. Porém, pela tarde, Passos chegou a Boticas, Alto Trás-os-Montes, terra mais rude. E, aí, declarou, sobre o governo que horas antes ainda tinha tempo: "Pode até durar a legislatura toda, mas já ninguém espera novidades dele." Falou para dentro, foi só pessimista.
Para fora, Passos lançou um anátema: "Mas quem é que põe dinheiro num país dirigido por comunistas e bloquistas?" Se continuar assim, ainda desembarca por cá o Sebastião Salgado, o fotógrafo das calamidades. Põe-lhe um cartaz ao pescoço, "O Fim Está Próximo!", e faz-lhe o retrato oficial.
Continua amanhã. Leia os episódios anteriores do Folhetim de Verão.
[artigo:5359684]