Miguel Guimarães:"O ministro da Saúde está fragilizado"
Como vê o anúncio de greve feito pelos sindicatos médicos?
Ainda não conheço exatamente as razões pelas quais os sindicatos anunciaram a greve. Tanto quanto percebi das notícias, os sindicatos marcaram dias de greve, mas também disseram que estavam disponíveis para o diálogo e que o ministro podia evitar a greve. Não sei quais as contrapartidas que o ministro apresentou aos sindicatos para terem reagido desta forma ou se esta reação corresponde à tentativa de quererem alcançar outros objetivos além dos que o ministro tinha mostrado abertura. O ministro obviamente está fragilizado neste momento, não penso que seja suficiente para que o governo faça alguma alteração na composição ministerial e nós também queremos ter um ministro forte. Temos de ter alguém no ministério que defenda a saúde, porque se a questão que temos em cima da mesa é as finanças versus a saúde, temos de ter um ministro que consiga defender a saúde e que a coloque em primeiro lugar. É isso que pedimos ao professor Adalberto Campos Fernandes. E é o desafio que lhe lanço: que o ministro da saúde cumpra o que é a sua missão principal, que é defender a saúde dos portugueses. E significa alcançar acordos, ouvir os parceiros institucionais, os sindicatos, as ordens e ter como objetivo principal melhorar o acesso aos cuidados de saúde e a qualidade da saúde.
Sente que há espaço para o ministro recuperar?
Sinto que há e espero que esse espaço exista. Não sei qual é o pensamento estratégico do governo, mas a saúde é uma questão importante e que mexe com todos os portugueses. Se existir uma greve dos enfermeiros, dos médicos, tem de se conseguir alcançar um acordo. É bom para o governo e se é bom para o governo, é bom para os portugueses. O ministro da Saúde tem de perceber que se defender a saúde dos portugueses tem o apoio das várias instituições e este tem de ser o caminho que o ministro tem de seguir.
A Ordem apresentou um estudo sobre o peso do salário dos médicos, na sequência das afirmações de que seria 87%. Quanto ganham os médicos?
A Ordem tem um estudo feito por economistas com dados que estão publicados pela Direção-Geral da Administração e do Emprego Público e pela Administração Central do Sistema de Saúde. Quando os analisamos é fácil de concluir que os médicos que trabalham para o SNS constituem 22% dos recursos humanos e as remunerações correspondem a 45% do valor global. E não a 87% como foi dito por algumas pessoas. A remuneração base média mensal dos médicos é 2765 euros e não podemos comparar diretamente aquilo que é a remuneração base média mensal com aquilo que é o ganho mensal. O ganho mensal inclui as horas extraordinárias e ninguém faz mais horas extraordinárias em Portugal do que os médicos. Uma das grandes reivindicações dos sindicatos é que os médicos deixem de ser obrigados a fazer 200 horas de trabalho extraordinário por ano, sendo que a maior parte faz 500, 600. Os sindicatos querem que os médicos, tal como os outros trabalhadores da função pública, tenham uma limitação de 150 horas. Os médicos, na sua maioria, não estão interessados em fazer horas extraordinárias. Já estiveram, quando eram mais bem remuneradas. Mas as pessoas, na prática, são obrigadas a fazê-las e vão fazê-las para manter o SNS à tona da água. Se amanhã os médicos que fazem serviço de urgência cumprissem rigorosamente o que está na lei atual - as 200 horas -, o SNS entrava pura e simplesmente em colapso. É óbvio que estas horas extraordinárias, que correspondem quase a 22% no ganho mensal, vão aumentar a remuneração dos médicos.
Não poderão os 87 % apresentados por alguns enfermeiros ser reais, estando a englobar os valores pagos das horas extraordinárias?
Não. Relativamente àquilo que são as remunerações globais gastas com os vários grupos isto é factual, são os dados do Estado.
Portanto, este valor de 2765 euros inclui internos, especialistas e as horas extraordinárias?
Não, não. As horas extraordinárias estão no ganho médio mensal.
Que é na mesma 45%?
É na mesma 45%.
Ou seja, estes 45% já incluem as horas extraordinárias, as prestações de serviço, médicos internos, especialistas...
... As chamadas aos transplantes, tudo. Tudo o que seja ganho dos médicos que trabalham no SNS está incluído nos 45%. Quando comparamos remunerações e acho que não vale a pena comparar - quem falou disso foram alguns dirigentes dos sindicatos dos enfermeiros -, devemos falar das remunerações-base. Os médicos fazem muitas horas extraordinárias e os enfermeiros quase não as fazem, portanto é natural que aumente o ganho mensal.
Dizia que se os médicos cumprissem as 200 horas extraordinárias por ano, o SNS colapsava. Em que fase do ano é que deixaríamos de ter médicos?
Num hospital mais periférico, diria que em abril, maio. Num hospital central este valor pode ser alcançado mais tarde, junho ou julho. Depende das circunstâncias, dos serviços, da deficiência de capital humano, porque isto só acontece porque faltam milhares de médicos no SNS. Há uns meses disse que faltavam 4000 a 5000 médicos, mas neste momento sei que faltam mais. E este é o reflexo: de que mais de um quinto das horas é feito em horas extraordinárias e, mesmo assim, os hospitais trabalham em deficiência.
Como é que vê o atraso nos lançamentos dos concursos para novos médicos?
Para o SNS cumprir os seus objetivos em termos de estrutura, do seu código genético definido na Constituição da República Portuguesa, faltam médicos, enfermeiros, assistentes operacionais e técnicos. No caso dos médicos, podíamos ter os elementos necessários mas os concursos estão sempre atrasados. Muitos dos médicos que acabaram a especialidade já há vários meses acabam por tomar outras opções. Outro dia recebi três médicos, dois deles iam trabalhar na medicina privada e um ia emigrar. Quanto mais rápido o Ministério da Saúde fizer os concursos e melhores condições der aos médicos - sei que neste momento as condições são difíceis, não é fácil melhorar as condições de trabalho de um momento para o outro -, melhor. Há alternativas às remunerações: os dias de férias e uma série de soluções.
Voltando à questão entre médicos e enfermeiros, o que aconteceu pode agudizar relações?
Pela minha parte e pela Ordem dos Médicos em nada agudiza as relações com os enfermeiros. Agora, não posso aceitar que publicamente fosse dita uma coisa que não é verdade. Nas questões reivindicativas não vale tudo. Aliás, nós, nas questões reivindicativas nunca temos falado dos outros. É uma questão que faz história. Alguns enfermeiros ligados aos sindicatos, e não sei se ligados à Ordem dos Enfermeiros, vieram dar como exemplo negativo o dos médicos, eventualmente para conquistarem mais espaço ou tirarem mais partido das reivindicações que estavam a fazer.
Faz sentido haver uma união?
Com certeza. Algumas das reivindicações que os enfermeiros têm são coincidentes com as dos médicos. Normalmente não me pronuncio sobre os outros profissionais, mas entendo que, de facto, é justa a reivindicação dos enfermeiros. Já disse várias vezes que os enfermeiros têm um papel muito importante no SNS. Trabalham em conjunto com os médicos e são os dois importantíssimos para o funcionamento do sistema. E, de facto, os enfermeiros têm remunerações que não são adequadas àquilo que são as suas funções neste momento. A questão da carreira profissional e de os enfermeiros especialistas terem uma remuneração melhor parecem-me coisas mais ou menos pacíficas. Da parte dos médicos, as reivindicações são basicamente três. Uma, que é justíssima, é a questão dos médicos de família que têm listas de utentes demasiado elevadas. Mas que também as têm, porque não há ainda médicos de família para todos os utentes. Aqui há uma situação complicada entre deixar mais utentes sem médico e começar a reduzir a lista de utentes. Sendo que a breve prazo isto vai ser possível, porque temos em formação milhares de médicos de família. No próximo ano, se o ministro contratar todos os médicos de família que estão a formar-se, o problema está resolvido. A segunda é em vez de terem no seu horário normal 18 horas de serviço de urgência terem 12, a outra alteração é passar das 200 para as 150 horas extraordinárias anuais.
A Ordem tem promovido reuniões em vários pontos do país. Quais são as preocupações dos médicos?
Muitos referem que não se sentem respeitados no serviço. Já ninguém fala com eles, as pessoas estão cada vez mais afastadas umas das outras, o ambiente de tensão e exigência permanente nos vários serviços hospitalares e na medicina geral e familiar está sempre a subir e isto está a ter consequências muito negativas para os médicos. Quando falamos das pessoas optarem pelo privado ou por emigrar não falamos só de jovens médicos, mas também de especialistas que batem com a porta porque já não conseguem estar a trabalhar nos serviços. As condições de trabalho, da respeitabilidade dos serviços, da dignificação da própria profissão e mesmo da relação interdisciplinar é uma questão essencial. Além disso, algumas das questões que foram levantadas têm que ver com as exigências a nível de oportunidades.
O que gostava de ver refletido no próximo Orçamento do Estado?
Fui recebido pelo Presidente da República e uma das mensagens que transmitimos teve que ver com o estado da saúde no país e não propriamente com os problemas dos médicos, dos enfermeiros ou de outros funcionários. Neste momento, o país, devido ao subfinanciamento crónico que a saúde tem tido - acho que nem mesmo o próprio governo tem dúvidas - está a criar desigualdades sociais muito grandes. As pessoas com mais capacidade económica obviamente têm acesso a cuidados de saúde com facilidade. Porque se não tiverem no SNS, têm na medicina privada. As pessoas que não têm capacidade económica têm de ficar no SNS e esperar pelas consultas, pelas cirurgias. O SNS foi uma das principais conquistas da nossa democracia, que permitiu durante alguns anos que os portugueses tivessem em condições de igualdade acesso a cuidados de saúde. Estamos a começar a perder isso. Neste momento o SNS já não tem capacidade para servir todos os portugueses e a verdade é que mais de 40% dos portugueses pagam a saúde do seu bolso. O SNS está a perder capacidade de resposta, está a definhar, e isso não começou este ano, tem sido nos últimos quatro ou cinco anos. O Ministério da Saúde era um dos que tinha um financiamento maior e a troika acabou por penalizar o SNS. Por isso, a mensagem que nós transmitimos ao Presidente da República foi que é preciso reforçar o orçamento da saú-de. Claro que não é o Presidente da República que faz o Orçamento do Estado, mas fomos sensibilizá-lo. Claro que já falámos com o ministro da Saúde, publicamente já dissemos isto várias vezes. O ministro das Finanças deve perceber que esta questão é essencial.
Acha que vai ser possível fazer crescer o Orçamento da saúde?
Penso que sim. Tudo o que cresça, nem que seja 0,2/0,3% do PIB, já é bom. Mas o ideal seria crescer pelo menos 0,5%. Já fiz o apelo ao ministro das Finanças e ao ministro da Saúde. Este certamente que ficaria mais contente se tivesse um orçamento maior, mas os partidos políticos têm responsabilidade. Devo lembrar que o Bloco de Esquerda, quando a Dra. Catarina Martins se candidatou, defendia para a saúde apenas 8,5% do PIB. O líder do Partido Comunista também defendia um orçamento maior para a saúde. Espero que os partidos que neste momento dão força ao governo tenham em conta que são estes os problemas. Não basta vir dizer que os enfermeiros ou que os médicos têm razão para cativar votos em altura de eleições, têm de conquistar algum espaço nessa área.
Uma das formas de luta que os médicos e a Ordem assumiram foi a denúncia das deficiências, insuficiências e injustiças do SNS.
Temos denúncias de falta de materiais, de equipamentos, de equipamentos que já estão completamente fora do prazo de validade, que já deviam ter sido substituídos e não foram, nomeadamente na área da radioterapia, das TAC, das ressonâncias. No caso das TAC, a diferença entre as antigas, que ainda equipam uma grande parte do país, e as de última geração não é só terem melhor imagem e mais acuidade diagnóstica, a sua principal mais-valia é que emitem muito menos radiação. De falta de dispositivos, de equipamentos básicos, de determinado tipo de fios para fazer cirurgias, de determinado tipo de compressas ou luvas que já não existem e deviam existir. Depois há as denúncias de falta de capital humano e da pressão que exercem sobre as pessoas. Essas são talvez as maiores denúncias que estão a acontecer. Os conselhos de administração dos hospitais, mais do que nos centros de saúde, exercem uma pressão demasiado grande sobre os médicos e obrigam-nos a fazer coisas que eles não deviam estar a fazer. Isto é, a trabalharem mais horas do que o que deviam, a ficarem de urgência, às vezes em condições que não são as ideais. E isto é tanto mais verdade quanto mais novos são os médicos. Não temos feito a divulgação pública, mas temos atuado.