As concessões ao Reino Unido vão criar uma Europa a dois níveis

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Uma das poucas afirmações que se podem fazer com toda a certeza sobre o acordo de sexta-feira entre os líderes europeus e David Cameron é que ele terá pouco impacto no referendo de 23 de junho sobre a permanência britânica na União Europeia. É demasiado técnica para influenciar muitos votantes.

Mesmo aqueles que fizeram um esforço para entender as suas nuances não conseguem ter a certeza de quais serão exatamente os desenvolvimentos dos processos legislativos e judiciais que se seguirão. Este é, afinal, o primeiro acordo deste tipo.

Os meus amigos pró-europeus na Grã-Bretanha tendem a olhar para ele de forma pragmática. Foi bom o suficiente para o primeiro-ministro britânico poder lançar o referendo com a recomendação de que o Reino Unido deve continuar a ser membro da UE. Cumpriu o objetivo.

Do ponto de vista do resto da UE, o acordo é estranho. Os líderes europeus calcularam, na minha opinião acertadamente, que o custo do brexit - uma saída britânica da UE - seria muito alto num momento em que o futuro da própria União Europeia está em dúvida. Eles estavam dispostos a pagar o preço pedido para evitar uma calamidade. A questão é: será que pagaram demasiado?

A concessão mais importante é terem dado o seu acordo, pela primeira vez, a uma Europa a dois níveis. Isto não é uma opção de exclusão voluntária, uma isenção ou um desvio. Esta não é uma Europa de geometria ou velocidades variáveis - expressões que têm sido utilizadas no passado para designar diferentes graus de integração. Esta é uma libertação formal da meta de uma união cada vez mais estreita. Não tenho a certeza se isto tem algum significado legal, mas é importante como declaração política.

Como pode a UE lutar pela união cada vez mais estreita quando um dos seus membros mais importantes goza de uma isenção permanente? Os projetos Core - aqueles aplicados por apenas um subconjunto de membros - não podem ser a resposta. Eles não funcionaram bem no passado. A UE tem um mecanismo legal em vigor, que permitiria a um mínimo de nove países procurar uma integração mais profunda entre si. Se se dividir uma união fica-se com a desunião. Não se pode ter as duas coisas.

O mais recente desses projetos é o imposto sobre transações financeiras. Ele começou com 11 Estados membros. Depois, a Estónia desistiu. E agora a Bélgica tem dúvidas. É ainda teoricamente possível que os restantes nove países sigam em frente, mas existem dúvidas se o deveriam fazer. Quanto menos países participarem, maiores são as hipóteses de que este imposto faça simplesmente que os seus bancos vão para países da UE que não tenham tal imposto.

Este acordo contribui para a fragmentação da política económica. Ele reconhece que os países da zona do euro e os países que não lhe pertencem podem ter necessidades diferentes de garantir a estabilidade financeira. Grande parte do debate no Conselho Europeu tem sido se o Reino Unido deve ou não ter as suas próprias regras: regras básicas para o setor financeiro, como regras de capitais e procedimentos de resolução bancária. No final, a UE conseguiu manter a aparência de um conjunto único de regras a nível da UE, com algumas disposições especiais para o Reino Unido.

Mas como poderiam diferentes regimes reguladores do setor financeiro funcionar para uma união monetária, cujo principal centro financeiro - Londres - fica geograficamente fora das suas fronteiras? De acordo com este texto, o Banco Central Europeu e outras instituições envolvidas na regulação financeira devem aplicar as decisões de supervisão "de uma maneira mais uniforme do que as regras correspondentes a ser aplicadas pelas autoridades nacionais dos Estados membros que não participam na união bancária".

Este é provavelmente o eufemismo mais hilariante do texto. Os bancos europeus estão em mau estado. A união bancária deveria ser a resposta, mas está incompleta porque falta um apoio orçamental e um seguro de depósitos conjunto.

O Reino Unido não faz parte dela, mas faz parte do mercado único da UE para os serviços financeiros. Esta isenção é difícil de justificar.

E quanto aos benefícios sociais, a grande questão política no Reino Unido? A disposição que permite ao governo do RU restringir as prestações associadas ao trabalho para os funcionários não britânicos da UE por um período até quatro anos fará que seja um pouco mais difícil para algumas pessoas movimentarem-se através das fronteiras.

Isso não vai ser o fim da livre circulação de trabalhadores. Mas poder-se-ia pensar que se a UE levasse realmente a sério o conceito de uma união cada vez mais estreita a política deveria incentivar a movimentação transfronteiriça de trabalhadores e não o oposto. Outros países irão, sem dúvida, pedir - e conseguir - isenções semelhantes.

Existe o risco de que, após uma votação para permanecer na UE, o acordo não possa ser implementado na íntegra, o que levará a teorias da conspiração sobre a forma como a UE enganou deliberadamente o eleitorado britânico.

Se o acordo for implementado na íntegra acabará com a ideia de uma união cada vez mais estreita. E se os britânicos votarem pela saída, o acordo tornar-se-á nulo e sem efeito. A Grã-Bretanha iria entrar num longo processo de negociação da sua saída da União Europeia. Tenho dificuldade em conseguir ver um bom resultado de tudo isto.

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