A hipótese do génio maligno
No torvelinho de acontecimentos bizarros que caracterizam a atualidade não haverá nenhum leitor que já não tenha sentido necessidade de fazer um teste de realidade. Quando coisas estranhas nos acontecem no plano meramente individual basta um beliscão para saber se estamos acordados ou dentro de um pesadelo, mas, perante tudo o que está a ocorrer na Europa e nos EUA, precisamos de algo mais forte para saber se não estamos todos a viver dentro de uma alucinação coletiva. É útil recordar a angustiante dúvida existencial de Descartes, formulada há quase quatro séculos: poderão as nossas perceções acerca do mundo exterior - sobre as coisas, os outros e os nossos estados de alma - ser uma manipulação forjada nas nossas mentes por um "génio maligno", que se diverte com os abismos e os enganos para onde nos vai empurrando?
Num artigo recente publicado em The New Yorker, Adam Gopnik, a propósito do erro impossível na atribuição dos Óscares, ou da vitória improvável de Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, ressuscitava a versão moderna do génio maligno. O tema está a ser debatido há muitos anos por filósofos como Nick Bostrom ou David Chalmers, mas basta o leitor lembrar-se do argumento do surpreendente filme Matrix. Será que o que nós consideramos mundo não passa de uma ficção informática? Poderá a "realidade" esconder uma cósmica simulação de hiper-computador montada por criaturas de uma inteligência muitíssimo superior? Será que todos os acontecimentos aparentemente inesperados são, na verdade, episódios programados de uma enorme trama, destinada a saber qual a nossa capacidade de reposta ao absurdo, do mesmo modo que nos laboratórios de etologia os nossos cientistas colocam ratinhos em testes de stress?
A série de coisas anormais ocorridas recentemente não cabe neste artigo. Recordo apenas que não é verosímil que tenha sido um primeiro-ministro conservador a lançar a Grã-Bretanha no referendo do brexit, ou que Nigel Farage tenha dado parabéns à vitória ao remain horas antes de ter aparecido como o grande vencedor da rutura de Londres com a UE. Viola a lógica que um personagem de reality show como Trump se tenha tornado o presidente dos EUA, prometendo agora recriar uma nova idade de desregulação financeira que poderá precipitar uma nova borrasca no mercado global. Não é normal que os EUA sejam governados por gente que nega os factos das alterações climáticas e se prepara para intensificar os seus danos no mundo inteiro. Não é credível que depois de anos de austeridade, e com o espectro da desintegração em crescendo na UE, o presidente do Eurogrupo continue a pensar que a crise da mais estúpida união monetária construída à face da Terra, condenada a implodir por apenas servir os interesses das economias excedentárias, possa ser atribuída aos custos do álcool e sexo nos países do Sul.
Há uma frase latina, atribuída a Séneca, e retomada por Santo Agostinho, segundo a qual errar é humano, mas persistir no erro, por arrogância, pode ser considerado diabólico. Contudo, quando olhamos para a situação do Ocidente, não me parece ver nada de diabólico em Trump ou em Schäuble, em Dijsselbloem ou no esquecido Sarkozy, incendiando a Líbia para calar as dádivas de Kadhafi. Nenhuma destas figuras tem a densidade e consistência que o verdadeiro mal exige. Talvez não sejam mais do que criaturas digitais, caricaturas de um ardiloso software de simulação destinado a medir até onde vai a nossa resignação perante o absurdo e o inaceitável.