Quem escolhe por nós?

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Não há ano em que aqui o não escreva: o Orçamento do Estado é o mais importante documento político do ano. É nele que estão plasmadas as decisões políticas fundamentais para a comunidade, as grandes linhas de atuação do governo eleito. É também, ou deve ser, a concretização dos compromissos que os eleitores fizeram com os seus representantes.

Já se sabia que o OE deste ano iria ser particularmente difícil de elaborar. O governo é suportado por forças políticas que rejeitam as políticas europeias, nomeadamente o pacto orçamental - e mesmo, em muitos aspetos, os consensos europeus - e por um partido alinhado com a Europa e subscritor do pacto. Ninguém desconhecia que algumas matérias constantes nos acordos entre os três partidos que apoiam o governo provavelmente chocariam com regras europeias. Não surpreende, aliás, que a postura de António Costa e de alguns membros do governo colida com os do BE e do PCP e até de alguns socialistas: o primeiro-ministro diz que estamos perante um mero processo negocial, enquanto os bloquistas, os comunistas e alguns socialistas mais exaltados lhe pedem voz grossa em Bruxelas. Nada de novo, bem entendido, a dupla lealdade a que o governo está obrigado é um problema sem solução e que, cedo ou tarde, trará problemas irresolúveis.

Também Passos Coelho apresentou OEs apelidados de irrealistas, também a Comissão refilou e exigiu este mundo e o outro. O facto é que o anterior governo não acertou numa meta, apesar de todos os cortes, de todas as subidas brutais de impostos.

Em bom rigor, ninguém poderá dizer que as metas exigidas pelos pactos serão alcançadas. Ou que, no fundo, as opções políticas de António Costa resultarão numa melhoria do país respeitando os compromissos assumidos com a Europa.

E é aqui que surge o meu primeiro incómodo. No caso de alguém andar distraído, eu relembro: as políticas europeias para a resolução da crise, particularmente grave nos países mais frágeis do espaço europeu, foi um fracasso. Um fracasso rotundo. O que as autoridades europeias agora parecem exigir é a prossecução sem hesitações do caminho que nos levou do purgatório ao inferno.

Nada de novo. Há uma doutrina hegemónica na Europa. A tal que diz que a disciplina orçamental tudo resolve. A que defende que cortes de salários, pensões e prestações sociais trarão desenvolvimento e bem-estar; que o desemprego e a emigração de milhões de irlandeses, gregos, espanhóis, portugueses, italianos, são inevitabilidades, danos colaterais.

Apesar do aparente confronto entre o governo português e a Comissão Europeia e de as convicções da linha ideologicamente predominante apontarem para a vontade de fazer do caso português uma espécie de segunda versão do grego, ou seja, forçar, por uns meros pós decimais toda uma estratégia, seria verdadeiramente incompreensível que a Europa tomasse uma posição de inflexibilidade. Por um lado, a Europa confronta-se com problemas duma dimensão gigante. Desequilíbrios orçamentais bem mais importantes que o português e questões que põem em causa valores fundamentais como aquilo que se vai passando na Dinamarca. Em segundo lugar, ninguém deixaria de culpar a Comissão Europeia por uma brutal crise política que se daria em Portugal se, por efeito das suas exigências, a maioria que suporta o governo se desconjuntasse. Não duvido da existência de fanáticos dispostos a tudo para fazer vingar as suas posições, mas ainda creio na razoabilidade e que há gente que percebe que esse tipo de comportamentos levará o projeto europeu a um fim próximo.

O meu segundo incómodo tem que ver com a resignação com que aceitamos que o tal documento que espelha opções políticas fundamentais, o que respalda os compromissos entre o eleitorado e os seus representantes, o OE, precise de ser aprovado por alguém que não conhecemos, de quem não sabemos o nome, que não elegemos.

Não ponho em causa os tratados assinados por Portugal nem o mandato de quem os subscreve. Não ignoro, claro está, a legitimidade do poder de quem agora nos pode tentar impor medidas ou eventualmente nos pretenderá castigar com sanções. Mas sei que há algo de profundamente errado na construção dum projeto político quando os eleitores votam e não sabem que o seu voto pode nada contar. Não é altura de discorrer sobre a forma como a Europa foi construída nos últimos anos, como tudo foi feito nas costas do povo, como a soberania foi retirada sem que o seu único detentor fosse consultado. O facto é que é nestas alturas que mais claramente ficam expostos todos esses defeitos na montagem do edifício europeu e aquilo que descredibiliza o projeto como objetivo de todos os europeus.

Que tipo de confiança podemos ter em alguém que nos diz que vai implementar um conjunto de medidas, sabendo que existe uma probabilidade muito forte de não o fazer? A degradação da relação entre representantes e representados é inevitável. Se os portugueses não podem ter uma palavra definitiva sobre o caminho que quer prosseguir, valerá mesmo a pena ter eleições legislativas?

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