Yes, Donald?
No dia da tomada de posse de Trump, o New York Times publicou um texto de opinião, de David Brooks, exprimindo a última das esperanças dos que consideram 8 de novembro de 2016 e 20 de janeiro de 2017 dias negros. Brooks diz que esteve a rever a série britânica Yes, Minister e que encontrou nela consolo - aquele que advém de acreditar que, como o snob, inamovível e deslumbrantemente cínico Sir Humphrey Appleby, o alto funcionário da ficção, os burocratas de Washington encontrarão uma forma de obviar à inépcia, ignorância, impulsos e ideias fascistas de Trump, numa espécie de última barreira civilizacional.
É uma pobre esperança, como a que tivemos após a eleição, quando nos agarramos à ideia de que o Trump da campanha era um "boneco", que a vitória lhe traria a gravitas que quase toda a gente quis desesperadamente lobrigar nas palavras daquela noite e que a retórica racista, sexista, nacionalista e obscurantista parava ali.
Mas, claro, não foi assim. Apesar de ocasionalmente assegurar querer unir os americanos, o Trump pós 8 de novembro é, sem tirar nem pôr, o Trump da campanha. Quer nas escolhas para o governo quer nos tuites de bully inseguro, retorquindo a seja quem for que o critique, fazendo acusações não consubstanciadas (como a da existência de milhões de votos falsos por Hillary, em resposta ao facto de ela ter tido, no total nacional, quase mais três milhões que ele) ou comparando os serviços secretos americanos à "Alemanha nazi", quer nos pronunciamentos institucionais. A primeira conferência de imprensa de presidente eleito foi um misto de arruaça e comício, com a sua gente a aplaudir quando mandava calar um repórter da CNN ou mandava bocas à BBC; na tomada de posse vogou entre a retórica guerreira, divisionista e revanchista, o nacionalismo extremado e o auto-elogio - como nos seus discursos de campanha. Conseguiu até ser insultuoso em relação aos ex presidentes presentes, assim como aos restantes políticos (incluindo, claro, os republicanos), ao acusá-los de só se preocuparem com o seu bem-estar e de nunca terem representado o povo.
Porque ele - o multimilionário a quem nunca se conheceu atividade cívica, que nunca deu a cara por qualquer causa relacionada com a desigualdade, que não permite acesso às suas declarações de impostos, que tem um historial de maltratar empregados e que convidou outros multimilionários e representantes da cúpula do establishment financeiro e empresarial para o governo - assevera ser, com a sua administração, o primeiro verdadeiro representante do povo a ocupar a Casa Branca. Em linha, aliás, com a sua resposta , na última entrevista, sobre quem são os seus heróis: falou das suas qualidades de negociante e vendedor. Ou o único herói de Trump é Trump ou os seus heróis são, até para alguém tão desbocado, inomináveis; qualquer das alternativas é um desastre.
Como desastre é que a única garantia, a única linha defensiva que resta (se resta) seja a que Brooks aponta: "o sistema". Aquele contra o qual - lembram-se? - Obama fez campanha, para depois garantir ser "muito mais forte do que imaginava"; aquele que, diz-se, boicota todas as "boas" tentativas de mudança, e que em todas as narrativas surge como uma espécie de corporação clandestina e sombria de gente sem rosto, os detentores do "verdadeiro poder". É aqui que estamos: no momento em que talvez tenhamos de depositar a nossa última esperança na ideia de que um poder não democrático vai obviar à loucura do poder democraticamente eleito.
Não, Obama, um momento assim não é uma vírgula na caminhada da história. Não sei se há um sinal ortográfico para isto.